sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - Adrilles Jorge: “Caetano disse que seu tempo na prisão apagou sua atração sexual por homens. O meio influencia a orientação sexual das pessoas?”

 




O AMIGO PERGUNTA 

Adrilles Jorge: “Caetano disse que seu tempo na prisão apagou sua atração sexual por homens. O meio influencia a orientação sexual das pessoas?”

Francisco Daudt: Atenção que aí vai spoiler: a resposta é NÃO. Mas vamos aos argumentos, para que esse “não” seja melhor compreendido.

Motivação, meio e oportunidade. Cada ação humana precisa dessas três condições para acontecer. 

A orientação sexual habita o território da motivação. Ela só é conhecida pela pessoa (às vezes, nem tão conhecida assim). Para se transformar em ação, vai depender dos meios e oportunidades que se apresentarem.

É claro que a pergunta se refere ao meio, ao ambiente em que se vive, tanto que Caetano fala da cadeia, como meio inibidor/apagador de UMA orientação sexual dele.

Mas, como assim, UMA orientação? Existem outras? Na mesma pessoa?

Sim, existem. Vamos tomar o caso dos homens, porque suas orientações sexuais são mais fáceis de ler. Como nosso tesão é principalmente visual, a pergunta “para onde vão seus olhos?”, determina sempre a PRINCIPAL orientação sexual de um homem.

O relatório de Alfred Kinsey produziu uma escala de sete tipos (de 0 a 6) de acordo com a resposta dada à seguinte pergunta: você já teve orgasmo com outro homem? As respostas são: tipo 0/nunca ; tipo 1/raramente ; tipo 2/frequentemente ; tipo 3/equivalente ; tipo 4/principalmente ; tipo 5/quase que exclusivamente ; tipo 6/exclusivamente.

É claro, Kinsey era um taxonomista obsessivo, ele não poderia usar critérios subjetivos na pesquisa, eis porque escolheu o orgasmo partilhado.

Mas eu, em 45 anos de clínica, pude adaptar a pesquisa de Kinsey para outra pergunta, desta vez subjetiva: você já se sentiu atraído/teve tesão por outro homem?

Como resposta, a escala Kinsey quase que se repetiu; com a exceção do tipo 3: nunca encontrei um bissexual equivalente. Sempre houve uma predominância na orientação sexual, mesmo que o cara nunca tivesse encostado um dedo em outro homem. Ou numa mulher, pois já pesquisei a coisa em adolescentes virgens de interação erótica. Eles tinham abundante motivação, mas faltaram-lhes os meios e as oportunidades.

Voltando então à pergunta inicial: o meio em que se vive pode perfeitamente determinar a PRÁTICA sexual, mas não vai alterar a motivação, a orientação.

Suponha um tipo 1, hétero com eventual desejo homo. Para ele, é moleza cancelar sua prática homoerótica. Aliás, é o que mais acontece, basta ver a patrulha homofóbica da maior parte das turmas de amigos homens. A pequena sub-orientação de vez em quando vai dar um alô, mas ele a varrerá para debaixo do tapete.

Agora peque um tipo 4, homo com frequente desejo hétero. Faça ele se ordenar padre e ponha-o como professor de apetitosos petizes. Ah, o desejo hétero vai ser facilmente esquecido...

Resulta então que as orientações principais não mudarão, mas o meio em que se está vai pesar fortemente na balança custo/benefício, e vai determinar qual das orientações será levada à prática.

Psicanalista Francisco Daudt diz por que ativos se sentem superiores e passivos inseguros (Observatório G)

 Matéria original do Observatório G

 


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O “CONFIÔMETRO”



“Sem noção” veio aposentar a antiga “falta de desconfiômetro”, que designava o problema daquela pessoa desprovida de sensibilidade para perceber que não está agradando, que está invadindo, sendo inconveniente e inoportuna.

Mas... e o “confiômetro”, que ninguém fala nele? No entanto, ele é um poderoso e ativo aparelho cerebral que não desliga nunca. A confiança que temos em algo ou alguém está sempre sendo medida, mesmo que a gente não perceba. Como os papéis da bolsa, ou está em alta, ou estável, ou em queda... ou some completamente, pode reparar.

A mãe do cliente descobriu que ele andava cheirando cocaína e deu-lhe uma dura. Passou meses revistando suas coisas e armários. Um dia ele lhe disse: “Mas mãe, faz um tempão que eu nem chego perto!” E ela: “Ah, meu filho, quando a gente perde a confiança, leva um tempão para recuperar...”

Confiança. Do latim cum + fides, com fé, com crença, com crédito. Olha só a importância dela em nossas vidas: fiança, fiado, fiador, fiel/infiel, confidente, confidência/inconfidência, confiado/desconfiado etc. A lista é enorme.

Reputação é um bem precioso que depende totalmente da confiança. A coisa é tão séria que, diz o ditado americano, “a fama dura quinze minutos; a infâmia é para sempre”.

Esse negócio de “ponho a minha mão no fogo”, desculpe, mas é conversa fiada. É como diz a plaquinha na venda: “Fiado, só amanhã”. Ou como disse o marechal Floriano Peixoto: “É preciso confiar desconfiando”. 

“Fé cega” é um estado alterado da mente, maluquice própria de fanáticos,  que desejam a “morte aos infiéis”. Se você estivesse seguro de sua fé, por que haveria de desejar a morte de quem não crê? Mas... é como disse Beto Guedes: fé cega, faca amolada. É preciso muita amolação para se manter os olhos fechados à desconfiança, para se desligar o confiômetro.

Como era de se esperar, a confiança também é a base da boa psicanálise. Os clientes chegam me dando um “crédito de confiança”, pois fui indicado por alguém em que eles “botam fé”. Eles me dirão (ou não) coisas que nunca ousaram dizer para ninguém, ou até para si mesmos; tudo vai depender de mim e da confiança que neles despertar.

Claro, o contrato de confidencialidade que a psicanálise implica é base de tudo. E eu que esteja atento, pois a cada sessão a confiança está sendo posta à prova.

O psicanalista que chama de “resistência neurótica”, que desrespeita a desconfiança do paciente, está arruinando um dos mais preciosos instrumentos da nossa saúde mental: o confiômetro.

CONSCIÊNCIA DE SI – O APARELHO LEITOR



Há uma estranha espécie de macaco que sabe que existe. Não apenas sabe, mas sabe que sabe: o Homo Sapiens.

Você está lendo este texto, é capaz de olhar para dentro de si e pensar, “Eu sei que existo, que penso, que desejo, que sou pouco mais que um marionete de um DNA que vem se replicando sem interrupção há 3,4 bilhões de anos, feito por ele para tocá-lo adiante, cheio de softwares inatos que a ele servem, ainda por cima sei que vou morrer e ser esquecido, mas... eu tenho uma pequena margem de arbítrio sobre este meu tempo de vida, posso tentar algum sentido próprio para ela. Caramba, que bicho estranho sou eu!”

A consciência de si é mesmo muito estranha. Linæus, o cara que batizou nossa espécie, deve ter tirado o nome dela a partir de seu grupo de amigos intelectualizados. A capacidade de reflexão, de olhar para seus próprios pensamentos, não é – apesar do nome da espécie (o homem que sabe que sabe) – algo comum. Se Linæus fosse mais realista e fizesse uma pesquisa de campo, chamaria nossa espécie de Homerus Simpsonium.

Sim, Homer Simpson retrata a imensa maioria da humanidade de maneira mais fiel e crível. Nossa principal tendência é a reação e o imediatismo, não é a reflexão. 

Imagine um dos nossos ancestrais caçadores-coletores vendo um bando de amigos em desabalada correria, e parando para pensar: “Qual o sentido de se ficar correndo por aí? Por que as pessoas correm, afinal? Tenho eu vontade de correr ou não?”

Esse foi provavelmente devorado e não deixou descendentes. Os reativos da correria, sim. Eis porque eles são maioria.

Ainda assim, todos temos alguma capacidade de reflexão, alguma consciência de nós mesmos, Homer Simpson inclusive.

Mas aí entra a questão principal aqui tratada: como nós nos vemos? Quando alguém diz “eu tenho consciência de que a humanidade caminha para...”, faz isso a partir de um aparelho leitor, usando uma lente variável; não existe essa coisa de “ter visto a verdade definitiva”. A ciência nos ensina que o observador influencia o resultado da experiência, que dirá a leitura dos fatos.

Meu melhor exemplo é a depressão: a mente depressiva olha os fatos (e o destino) com a pior das lentes, com um viés catastrofista. Tudo vai dar errado, tudo está destinado ao fracasso, nada adianta, nós não valemos nada, não há graça no mundo.

Duas semanas de um antidepressivo moderno... e a lente muda. A realidade anterior deixa de ser... real. A consciência de si mesmo ganha uma nova perspectiva, a pessoa entende que ela estava ligada a um problema de hardware, ela se dá conta de que é preciso questionar o aparelho leitor que mora em nós.

Esta é a principal função da psicanálise: mudar o aparelho leitor com que nos vemos e nos julgamos. Permitir uma releitura de nossa história. Buscar justiça, nessa nova visão. 

E com isso, aumentar nosso arbítrio e construir melhor nossa realidade.

Natureza Humana: Raiva injusta



Desde que nascemos, a coisa mais difícil de se gerenciar (além do erotismo) é a raiva. A raiva nos surge em qualquer percepção de injustiça por nós sofrida, e ela é fundamental para que tenhamos força e motivação para corrigir essa injustiça. Sem indignação não há justiça, dessa forma podemos dizer que A RAIVA É MÃE DA JUSTIÇA.


A justiça, por sua vez, vem da avaliação do tipo de troca que estabelecemos com o mundo, e que o mundo estabelece conosco. Se a troca é justa, é acertada, é equivalente, sentimos paz. Se nos tiram, nos subtraem, nos abusam, sentimos raiva. E a raiva busca um acerto de contas, ou seja, justiça. Isso não é aprendido, nasce com a gente.


Uma criança opera sua raiva de forma... infantil: sai batendo, sai gritando, sai chorando, muito devido à sua impotência frente à raiva. Cedo a cultura (i.e., o Superego) lhe ensina que isso é errado. Mas não lhe ensina o que fazer para operar sua raiva de maneira civilizada em busca de justiça. A principal função do Estado, desde que foi inventado após a revolução agrícola, há uns onze mil anos, é exatamente a de mediador de conflitos e promovedor de justiça. O cidadão abre mão do uso da violência em causa própria e entrega ao Estado (a quem sustenta com seus impostos) a mediação de seus conflitos, sua segurança contra o crime e a predação,  a promoção de justiça, enfim. 


Haveria dois lugares onde o gerenciamento da raiva deveria ser ensinado: a casa e a escola. Infelizmente, tal não acontece, nem em uma, nem em outra. Ambas se reúnem para reprimir a raiva, mostrá-la como algo feio e errado, algo a ser suprimido, a ser substituído pela “bondade”. O resultado é isso que vemos: doença neurótica obsessiva, ou transgressão sadomasoquista. A obsessividade funciona sobre dois eixos: pureza e controle. A principal “pureza” que o obsessivo busca é a ausência de maus sentimentos, do rancor, da vingança, da maldade. Seu ideal de controle serve aos mesmos propósitos de busca de pureza: arrumação, pontualidade, higiene e limpeza exageradas, um mundo perfeito de ordem e de paz. Quanto mais raiva a reprimir, mais rejuntes de azulejos a serem limpados com cotonete, mais quadros tortos a acertar. Mas… a injustiça que causou aquelas raivas continua sem ser corrigida.


O sadomasoquismo é também ineficiente. Primeiro porque ele é deslocado: um menino que tortura animaizinhos não está corrigindo a injustiça original, está é arranjando mais encrenca para si mesmo. Depois porque ele vicia, a criança fica apegada a seus jogos malvados (o bullying é um exemplo típico), sendo ativamente cruel, e assim repassando a crueldade que sofreu, perpetuando a injustiça. Quem não se lembra do “passa adiante, se não vira elefante”? O aluno da carteira de trás dava um cascudo no da frente, e o da frente, em vez de corrigir o malfeito, tornava-se malfeitor também.


Mas nem toda raiva é fruto de um clamor justo: há raivas injustas. A mais típica é a inveja. Se fulano tem um carro melhor do que o meu, não é justo que eu acredite que ele está me sacaneando por isso… apesar de o sentimento ser esse. Esta é a principal dificuldade para se chegar a um bom conceito de justiça social, por exemplo: ela é frequentemente concebida como uma igualdade de posses, em vez de se pensar em igualdade de oportunidades, e em igualdade frente às leis, essas sim, os pilares da democracia.

Já os ciúmes, apesar de poderem ser clamor injusto, muitas vezes são raiva justa: se uma criança é completamente negligenciada pelos pais porque nasceu um bebê novo na casa, ela está coberta de razão para sentir raiva da situação.


Meu ponto aqui é que nem toda raiva é coisa feia a ser reprimida, e pode ser olhada com a seguinte pergunta interna: “onde estou sendo injustiçado, e o que posso fazer para corrigir isso?”; mas também que nem toda raiva contém um clamor indiscutível de justiça.



domingo, 29 de novembro de 2020

O AMIGO PERGUNTA - “O que é consciência, em psicanálise?”

 


O AMIGO PERGUNTA 

“O que é consciência, em psicanálise?”

FD: É uma pequena janela por onde nossa atenção olha; aquilo que é visto fica consciente para nós.

Freud fez essa divisão, na primeira vez em que ele esquematizou nosso aparelho psíquico (ou “mente”): havia um enorme arquivo de memórias e impulsos (o jeito como ele chamou o equivalente aos instintos animais, em nós) no INCONSCIENTE. Inalcançável e inatingível pela nossa vontade, mas podíamos deduzir que ele estava lá pelos sinais de sua existência, como os sonhos, p.ex.

Em seguida, outro departamento cheio de memórias: o PRÉ-CONSCIENTE. Esse é relativamente fácil de acessar, basta que nossa atenção se volte para ele. Como exemplo, agora vou falar de algo que estava até então no seu pré-consciente, mas... no momento em que você vir a palavra, sua atenção se voltará para aquele arquivo e a memória se tornará consciente: seu pai.

É, eu sei, você não estava pensando nele, mas um monte de memórias apareceu com as simples letrinhas finais do parágrafo anterior.

Foi por isso que Freud nem deu espaço – no desenho que fez – para o CONSCIENTE: ele é muito pequeno e fugaz, completamente dependente da nossa atenção.

Enquanto você lê este texto, sua atenção pula para fora e para dentro, ligando as palavras lidas a seus sentidos, a suas memórias pré-conscientes (e elas se tornam conscientes nessa hora), a pensamentos e deduções provocados pelo texto etc.

É claro, sua atenção também pode pular para súbitas mensagens que apareceram na tela do celular, para aquela vontade de beliscar alguma coisa na cozinha...

E se ela pular muito, você pode até não ter chegado aqui no texto. Hoje em dia, chamam isso de DDAH (“distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade”), mas para ser sincero, a principal razão pela qual nossa atenção é desviada está na chatura dos textos.

O AMIGO PERGUNTA - “O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

 


O AMIGO PERGUNTA 
“O que você faz quando o problema não é do cliente, e sim de alguém próximo a ele?”

Francisco Daudt: Nada... a menos que o problema do outro seja, afinal, um problema do cliente. Inúmeras vezes diagnostiquei e sugeri médico, advogado etc. para problemas que acabavam afetando meus pacientes.

Mas dois casos são cômicos e ilustrativos. A mãe idosa da paciente a estava levando à loucura. Era uma irritabilidade claramente depressiva, e a mãe, autoritária e teimosa, se recusava a ir a médico ou achar que havia algum problema com ela. 

Eu disse à paciente: “Você vai comprar esse antidepressivo”. “Mas eu não estou deprimida”, disse ela. “Não é para você, é para sua mãe. Eu sei que ela não aceita remédios, você diga que é um revitalizante supermoderno para idosos” (o que não é, afinal, uma mentira).

A mãe adorou, a vida da minha paciente mudou significativamente para melhor. Tempos depois, recebo um telefonema da mãe (os telefones funcionavam, na época): “Doutor, minha filha está viajando, o Sr. poderia me dar uma receita daquela vitamina maravilhosa que eu tomo?”

O segundo caso é do marido da cliente, supostamente sofrendo de impotência. Já havia tentado de tudo... e nada. Ele nem chegava perto dela; se se beijavam, logo ele arranjava uma desculpa para se afastar.

Só que aquilo não me parecia impotência, e sim inibição. O marido não era chegado ao pensamento reflexivo, não adiantava “conversar” com ele. A meu ver, ele chegava na cama com uma tonelada de cobranças e culpas, com enormes expectativas de desempenho. Convenhamos, é um conjunto de pensamentos nada inspirador.

Como a coisa se arrastava por meses (em todos os sentidos), expliquei minha impressão à paciente e a instruí. É isso mesmo, fiz um côutchingue sexual para ela.

Na noite seguinte, os dois na cama, ela disse ao marido: “Não quero sexo, quero chamego e beijinho; mesmo se você se animar, eu vou dizer não. Só quero poder usar o vibrador e ter um orgasmo, enquanto a gente se faz carinho”. 

Docemente constrangido, ele concordou... e foi um sucesso. Terminada a função, ele comentou: “Mas é tão simples assim? Que beleza!”

Quando amanheceu, ele lhe disse: “Sonhei que te comia... e foi ótimo; na verdade, eu estou com vontade de te comer agora!”

E comeu.