Artigo escrito para apresentação em mesa redonda da V Jornada Cena de Psicanálise da CENA, psicanálise e cultura RJ
A psicanálise clínica sofre de uma doença perversa de domínio-submissão que tem sido nefasta para sua eficácia terapêutica, seu desenvolvimento teórico e seu instrumental epistemológico. O psicanalista se coloca numa posição superior ao cliente, que, reverente ao senso comum da respeitabilidade da psicanálise, a ele se submete, à sua linguagem estranha se adapta, atropela seu próprio universo cultural para atender ao do psicanalista, formando com ele uma cumplicidade não deliberada por nenhum dos dois que continua a doença perversa de domínio-submissão que já traziam da cultura. Ao se reencenar na psicanálise a doença perversa com a parceria do psicanalista, perde-se o principal fator diagnóstico-terapêutico da perversão: o estranhamento do sintoma. Ao se perder o estranhamento do sintoma, outro critério para a caracterização de um fato psíquico como doença fica igualmente prejudicado: a compulsão deixa de ser desprazerosa, o cliente já não fica mais incomodado com a submissão. E por que ficaria, se o psicanalista também não se incomoda com o domínio?
Aludi a critérios para chamar um fato psíquico de doença porque julgo que essa denominação é ideológica. Dizer que algo é doença psíquica não é nada auto-demonstrativo. Ou pelo menos não é tão auto-demonstrativo quanto dizer que algo é doença física. O critério de doença psíquica varia com a cultura e com a ideologia. Há culturas em que o que chamamos psicose é chamado de iluminação, o que chamaríamos de perversão, como o canibalismo por exemplo, é visto como ritual sagrado. Os seis critérios que proponho para caracterizar um fato psíquico como doença são: estranheza; compulsão; repetição; grande consumo de libido; fixação objetal; satisfação desprazerosa. Isso pode ser bem nítido num ritual da neurose obsessiva, como o lavar as mãos de Lady Macbeth. Ela estranharia sua obsessão, seria mais forte do que ela, teria que lavar-se repetidamente, a impureza de suas mãos ocupava-lhe quase todo o tempo, era sempre o mesmo problema e, ao satisfazer sua compulsão, poderia ter até dor, já que as mãos acabam em carne viva. Ora, no caso da relação de domínio-submissão que acontece na psicanálise clínica, a estranheza e o desconforto que um paciente sente com o domínio do psicanalista vão desaparecendo na medida em que o psicanalista se apresenta como um valor cultural maior do que aqueles da cultura do paciente, diante do qual o paciente deve-se curvar. E ele se curva. É preciso lembrar aqui que o psicanalista já foi paciente um dia, e passou pela mesma diluição de seu desconforto e de sua estranheza frente ao domínio-submissão, mais diluídos ainda se o psicanalista concebeu essa submissão como preço a pagar para ser aceito na profissão. Ele se curvou, perdeu o estranhamento de sua submissão, e agora, infelizmente a está passando adiante, prazerosamente assumindo o papel de dominador. É desta forma que o vassalo, por aspirar a ser tirano, deixa de questionar a tirania.
Estou me dirigindo a psicanalistas em formação, em processo de psicanálise pessoal que alguns chamam de “didática”. Mas esse adjetivo costuma servir como mais um instrumento de domínio: “Meu analista é tão importante que é um didata. Quem sou eu para questioná-lo? Ainda mais que, se ele se irritar comigo, pode barrar minha carreira profissional”. Quando uma situação dessas acontece, eu diria que a tal psicanálise é mesmo didática. Explica didaticamente a perversão que estou querendo demonstrar.
Aqui me vejo na necessidade de definir perversão. Considero essa necessidade como fruto das restrições de natureza teórica que a psicanálise sofre por causa da própria perversão que a acomete, um dos efeitos que citei no início desse artigo. Se eu estivesse mencionando uma doença da esfera da medicina clínica, poderia supor que o leitor estivesse familiarizado com os tratados de patologia e de fisiopatologia, onde tal doença estaria suficientemente descrita em suas características de etiologia, sinais, sintomas e funcionamento, de tal forma que não me veria obrigado a entrar nesses pormenores. Em psicanálise, tais coisas não podem ser chamadas pormenores. São “pormaiores”, dada a nossa deficiência em tratados de psicopatologia psicanalítica, nosso desconhecimento de fisiopatologia das doenças psíquicas. Percebo que a concepção de psicopatologia diverge a tal ponto de psicanalista para psicanalista que me vejo na necessidade de parar a cada citação de doença para explicar o que quero dizer com tal termo.
Proponho uma definição de perversão. Que ela seja entendida como o uso sistemático e compulsivo de uma combinação específica de mecanismos de defesa contra as ameaças do superego: a renegação/cisão do ego (Verleugnung/Ichspaltung – ver as definições no Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche & Pontalis), quando o indivíduo recusa, apesar de conhecê-las, as ameaças que o mundo externo (aqui representado pelo superego) lhe faz face a seu desejo de operar algum impulso parcial, e abre um território em seu ego onde, não só as ameaças não funcionem, como ele possa satisfazer dois impulsos condenados ao mesmo tempo: aquele que lhe estiver interessando no momento (no caso, o de domínio-submissão), mais o de se vingar do domínio que seu próprio superego exerce sobre ele. Proponho ainda que se desatrele, como condição necessária, o conceito de perversão do orgasmo ou de práticas sexuais, caso em que se perderia toda uma gama de sutilezas de representação psíquica que esta definição proposta permite. Com esta definição, quero que a perversão possa ser vista como um desdobramento da relação que o indivíduo tem com seu próprio superego, relação sadomasoquista de domínio e submissão, relação esta que está fadada a se repetir dentro da psicanálise clínica, a se manter a maneira em que ela se encontra hoje.
A doença perversa de domínio-submissão se manifesta na psicanálise principalmente através da postura e do comportamento do psicanalista. Em nome da neutralidade, o psicanalista envia sinais comportamentais que a cultura nos ensinou a vida inteira como sendo típicos de quem se arroga superioridade. Aqui precisamos da ajuda da antropologia para entender os atropelos de significados culturais feitos pelo psicanalista em nome de sua ciência. O silêncio do psicanalista elimina sua mais elementar cordialidade, sua “boa educação”. Em nossa cultura, a pessoa que reage às perguntas encarando a outra em silêncio está sendo francamente hostil e arrogando-se uma superioridade, como se dissesse que era importante demais para responder e não tinha dado intimidade à outra para que ela lhe dirigisse a palavra. A imposição do divã é outro desses atropelos. Alguém só aceitará falar pessoalmente de costas para outro em duas situações: porque entende, acata e vê vantagens para si nisso, ou por submissão. Como a decisão de usar o divã não é deixada ao cliente, e não é precedida de nenhuma explicação, o uso do divã costuma se dar por imposição, e costuma ser aceito por submissão. O silêncio continua a atropelar os direitos do cliente quando a ele não é dado nenhum referencial do que consiste a psicanálise, nenhum diagnóstico, nenhum prognóstico, nenhuma explicação de estratégia terapêutica, e nenhum direito de estranhar essas ausências, já que a resposta a qualquer queixa que o cliente tenha em relação ao processo será encarada pelo psicanalista como resistência, e as coisas pioram quando o cliente percebe (por dedução) que o psicanalista entende a resistência como insubordinação, má vontade do cliente, que a resistência é algo de que o psicanalista o acusa, algo de que deve se arrepender, se sentir culpado de ter. É um momento em que as interpretações passam a ter força de desqualificações. Se um cliente se queixa de não entender o processo psicanalítico e ouve do psicanalista que isso é uma manifestação de suas dificuldades habituais no trato com figuras de autoridade derivadas de seu pai, a queixa fica automaticamente desqualificada, e mais, a autoridade do psicanalista, tanto quanto a do pai, se torna algo inquestionável, endossada agora pela autoridade do psicanalista. As manifestações do domínio-submissão estão sintetizadas nesses exemplos. Poderíamos pensar em desdobramentos múltiplos na prática clínica, como comunicações do psicanalista que causam perplexidade ao cliente por serem herméticas, ou feitas em jargão, ou em linguagem para iniciados. Por exemplo, alusões ou interpretações referentes às protofantasias, à angústia de castração, à cena primal ou originária, às seduções sofridas pela criança, ao complexo de Édipo, que certos psicanalistas usam como panacéia, como explicativo de tudo, causam em geral grande estranhamento nos clientes. Esse estranhamento não será manifestado se houver submissão, e o psicanalista perderá a oportunidade de perceber quão alheios à vida comum de seus clientes esses conceitos são, quando em estado bruto. A propósito, chamar devaneios ou fantasias de “fantasmas” é um bom exemplo da causação de perplexidade. O cliente entende fantasma como sendo alma do outro mundo, mas como não é provável que o psicanalista esteja se referindo a espíritos, simplesmente não entende e se cala, envergonhado da sua ignorância, que agora, desgraçadamente tomará como sinônimo de inferioridade, exatamente como fez ao longo de toda sua escolaridade. A vergonha da ignorância é um fato gravíssimo para qualquer processo de aprendizado. Representa um dano sério para a psicanálise, para o paciente e para o psicanalista.
Tal perversão causa na psicanálise quatro tipos de dano: sobre a epistemologia da psicanálise; sobre o processo de transferência; sobre a teoria da investigação psicanalítica; sobre sua eficácia terapêutica.
1. O dano epistemológico.
A proposta de qualquer psicanalista que deseje a psicanálise como uma modalidade de conhecimento confiável é poder conferir seus achados de investigação e saber se eles se aproximam da verdade ou não. Deixemos de lado, neste momento, a questão filosófica da Verdade e ponhamo-nos de acordo com o fato de que não podemos prescindir de um desejo de Verdade. Proponho que adotemos, provisoriamente, em relação a Verdade a mesma definição lusitana que o Barão de Itararé deu para o açúcar: “O açúcar é uma substância que dá muito mau gosto ao café…em se não lho botando”. Ora, a psicanálise tem um sério problema epistemológico. Não podemos repetir seus achados em laboratório, não podemos aplicar testes double-blind como se faz para verificar eficácia de remédios (substância x placebo), e finalmente, não temos como garantir que a resposta que o paciente dá para nossas hipóteses realmente mostra seu erro ou seu acerto. Freud lidou com essa questão epistemológica em dois artigos dramáticos pela sua desconcertante ambivalência: A Negativa (1925) e Construções em Análise (1937). No primeiro afirma que a negativa de um paciente a uma hipótese do psicanalista é uma forma de confirmação de sua hipótese. No segundo, doze anos mais tarde, cai em si e diz que, a se tomar isso como verdade, o psicanalista estaria jogando um jogo em que não poderia perder: par, eu ganho; ímpar, você perde.
O que podemos fazer então, pela epistemologia psicanalítica? Podemos recorrer a um dos critérios propostos por Karl Popper em sua filosofia da ciência: o critério de refutação. Segundo Popper, uma hipótese estará dentro da área do conhecimento científico se for facilmente refutável, se for simples testá-la em sua validade. Desta maneira, o cálculo de um eclipse lunar, por exemplo, será facilmente refutado se não acontecer dentro do previsto. O exemplo oposto poderia ser a previsão de pouso de uma nave extraterrestre em Casimiro de Abreu, feita há alguns anos. Chegada a data, não houve sinal da nave. Questionados, os previsores explicaram que a multidão de espectadores havia afugentado os ETs. A previsão era válida? Era errada? Não se pode dizer, porque sua hipótese não era passível de refutação. Não ser passível de refutação não significa, para Popper, ser falso. Significa apenas ser matéria de fé, significa não estar na área do conhecimento científico. Não proponho que o conhecimento científico seja a única forma de conhecimento válida e confiável – e me oponho mesmo a esse endeusamento da ciência que a tem transformado na nova religião dos outrora céticos – mas concordo que sua metodologia pode ser conveniente em nossa busca da Verdade.
Como podemos utilizar o critério de refutação em psicanálise? Tornando a refutação fácil, formulando hipóteses simples, diretas e transparentes, e reconhecendo no paciente o direito permanente de recusá-las. Uma hipótese psicanalítica pode ser aceita ou recusada pelo paciente. Pode ser aceita porque está correta. Mas, se a refutação é difícil, e isso pode se dar porque a hipótese é muito complexa, obscura, não foi bem entendida pelo paciente, ou porque o psicanalista não tolera estar errado, não responde a pedidos de esclarecimento, acredita que a negativa do paciente é, no fundo, uma confirmação, a hipótese pode ser aceita, mesmo falsa, por submissão e seus desdobramentos: vergonha de não ter entendido; mudez por perplexidade; ou aquela frase patética (quando o psicanalista a aceita como confirmação): “Só se for muito inconsciente…” Pode ser recusada por estar errada. Mas, se a questão entre o paciente e o psicanalista é saber quem manda, a hipótese, mesmo correta, pode ser recusada por tentativa de domínio, por birra, por vingança, para não dar o braço a torcer. Ou seja: os principais falseadores da resposta do paciente são a submissão e o domínio!
Eis aí o dano epistemológico que a perversão de domínio-submissão causa à psicanálise. Se o psicanalista tenta torcer o braço do paciente, se ele se posiciona como superior-dominador, se a psicanálise é uma queda-de-braço, o paciente pode ou não dar o braço a torcer. Em ambos os casos o dano epistemológico está feito.
2. Dano Transferencial.
Tornou-se senso comum a estratégia de fazer com que a investigação psicanalítica se dê dentro da neurose de transferência encenada pelo paciente com seu psicanalista. Ele deveria mesmo induzir gradualmente o paciente a convergir sua neurose para dentro do território da psicanálise, seja através de interpretações auto-referentes (interpretar material de sonhos como dizendo respeito ao psicanalista, por exemplo), seja através de dissimuladas repreensões ao paciente quando sua neurose se encenasse com alguém além do psicanalista. Criou-se até um jargão para esse “pecado” do paciente: atuar fora (uma tradução errada do termo acting out, que significa simplesmente encenar).
Acho necessário questionar tal estratégia de investigação. O que acontece quando a doença em questão não é uma neurose de transferência? A melancolia, a depressão, a hipocondria e as neuroses atuais não se encenam por transferência. Quais serão as conseqüências de um psicanalista tentar induzir uma neurose de transferência no paciente quando nesses casos? Igualmente precisamos pensar a resistência por transferência, a chamada transferência negativa, quando o paciente se cala por um mal-estar surgido nele em relação ao psicanalista. Freud descobriu a riqueza de material inconsciente que essa transferência continha, e a colocou entre as muitas fontes de investigação (junto com os sonhos; devaneios; lembranças encobridoras; chistes; atos falhos e sintomas) que deveriam ser examinadas. No famoso capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud nos diz, numa rara e preciosa intervenção epistemológica, que uma hipótese psicanalítica poderia ser considerada correta se fosse confirmada pela investigação de várias dessas fontes, ou seja, se se fizesse o mesmo achado a partir da investigação de sonhos, devaneios, lembranças encobridoras etc. Ora, aqui temos problemas. Primeiro, se o psicanalista só visa a transferência (ou prioriza a indução de neurose de transferência na investigação de outros materiais), como confirmará seus achados a partir de outras fontes? Depois, a postura impositiva de domínio de um psicanalista, sua desconsideração pelos direitos do paciente serão, necessariamente, fonte permanente de mal-estar para o paciente (pelo menos até ele se submeter totalmente). Deve o psicanalista tomar esse mal-estar que ele mesmo causou como resistência por transferência? Deve pensar que o mal-estar vem da neurose do paciente, e que ele, psicanalista, não tem nada a ver com isso? Terá ele o respeito do paciente para investigar de maneira “neutra” um mal-estar que ele mesmo produziu? Não será essa a causa das guerras de silêncio, das sessões mudas em que, mais do que nunca, se evidencia a queda-de-braço entre psicanalista e paciente para saber quem vai falar primeiro, para saber quem está no domínio da situação?
O que penso se tornar nítido nesses casos é um tipo de patologia psíquica da qual nunca ouvi ninguém falar, mas que poderia ser descrita como perversão de transferência, perfeitamente análoga à neurose de transferência: o encontro do dominador com o submisso, do masoquista com o sádico, do exibicionista com o voyeurista, mesmo sabendo que essas relações são dialéticas (o masoquista explícito sendo um sádico sutil em outras horas e assim por diante). Só que, nas perversões de transferências, o objetivo é operar o impulso parcial, e não refletir sobre ele num processo investigatório. Na perversão, ao contrário da neurose, não há conflito íntimo, porque o superego está sendo renegado. Pode um psicanalista refletir sobre uma perversão da qual ele é cúmplice e indutor? Até poderia, se ele reconhecesse sua parte no processo, mas se ele opera a perversão, o mais provável é que isso seja um ponto cego seu.
O mesmo ocorre no chamado amor de transferência. Deveria ser chamado paixão de transferência. O termo latino Passio só admite uma tradução: sofrimento. Esse sofrimento devoto, no qual uma pessoa elege alguém distante, superior e misterioso como foco de sua idealização para venerar, odiar e/ou desejar, encontra no psicanalista tradicional seu objeto mais bem talhado: uma pessoa investida de autoridade, silenciosa, misteriosa, distante e ao mesmo tempo próxima, que se posiciona como superior, a imagem encarnada do superego. Ao tomar essa postura, será que o psicanalista é neutro? É fácil responder esta pergunta: tal postura é violentamente sedutora. Faz parte do be-a-bá elementar da sedução que todos nós aprendemos na escola da vida, e que é a estratégia histérica clássica: parecer difícil e melhor do que se é, distante mas ao mesmo tempo próximo, para despertar a paixão no outro e dizer que o desejo é só dele, que a gente não tem nada a ver com isso. Há psicanalistas que afirmam não existir psicanálise quando não existe a paixão de transferência. Pois podemos fazer aqui a mesma pergunta anterior: pode um psicanalista investigar de maneira “neutra” os conteúdos transferenciais de uma paixão que ele mesmo induziu?
Finalmente quero questionar as chamadas transferências positivas, aquelas que supostamente facilitam o processo de psicanálise e fazem um paciente eleger seu psicanalista. Penso que é função diagnóstica do psicanalista esclarecer os motivos pelos quais o paciente o elegeu. Lembro que elegi meu primeiro psicanalista, já se vão trinta e oito anos, por causa do seu humor sarcástico e irônico. Na época, para mim, isso era sinônimo de inteligência. Hoje, utilizando o que penso sobre psicopatologia, vejo que era sintoma da minha perversão de domínio-submissão encontrando seu parceiro transferencial. Mas não cabia a mim, paciente, entender isso. Cabia ao psicanalista diagnosticar. Não foi diagnosticado nem tratado. Nem poderia: fechou-se um pacto perverso sobre um ponto cego do psicanalista.
3. Dano Teórico.
É claro que, se há dano epistemológico, se há dano transferencial, há dano teórico. Mas meu assunto específico é a relação de domínio-submissão e o dano que ela causa na teoria da investigação na psicanálise clínica. Há quinze anos tive uma conversa intrigante com um amigo. “Gostaria de ir a um psicanalista só para ver se ele conseguia me pegar!”, disse ele. “Como assim, ‘te pegar’?”, respondi, surpreso, “quando você vai a um clínico porque está com uma dor, por acaso vai nessa atitude de desafio, ocultando sintomas para ver se ele consegue ‘te pegar’?” Ele concordou com o absurdo da situação, mas eu não fiquei satisfeito. Havia realmente na psicanálise essa situação de antagonismo, e o psicanalista de fato parecia alguém à espreita, vigiando o menor deslize do paciente para então cair sobre ele dizendo “Ha, ha! Te peguei! Está vendo como você tem monstruosidades ocultas?!” O psicanalista e o paciente ficavam entrincheirados em campos opostos, cada um querendo provar ao outro que ele estava errado, e o psicanalista dispondo de um aparato teórico para “desmascarar” o paciente. O setting psicanalítico era uma praça de guerra disfarçada, e a guerra só visa uma coisa: o domínio de um e a submissão do outro. À desastrosa vergonha de ser ignorante vinha se somar uma outra ainda mais nefasta: a vergonha de errar, de ser pego em erro. O erro, o tão interessante ato falho descoberto por Freud, cheio de possíveis informações sobre as nossas ambivalências, tinha se tornado uma janela para nossos defeitos ocultos, por onde o psicanalista ia olhar para nos “pegar”. Vi gerações de estudantes de psicanálise, psicólogos, analisandos e aculturados atentos para pegar seus colegas em atos falhos que eram imediatamente interpretados, sempre sem material associado, e sempre pelo pior prisma. A vergonha do erro é nefasta para a construção de um conhecimento confiável. E o psicanalista que quer “pegar” o paciente, passará a ter medo de ser ele mesmo “pego” pelo paciente. Passará a ter vergonha e medo de errar, dará excessiva importância negativa ao erro, encarará o erro como fraqueza, e a fraqueza é fatal num jogo de domínio. Pois digo que essa postura em relação ao erro é fatal para a construção de uma teoria confiável. Ela fica melhor num xamã, num feiticeiro ou num papa “infalível” que num psicanalista preocupado com a epistemologia de seu conhecimento.
Já comentei o dano teórico que resulta de centrar a investigação psicanalítica na transferência, e a riqueza de material que se perde ao se subestimar as demais manifestações do inconsciente reprimido. O privilégio da transferência também subestima uma atenção maior que deveria ser dada ao estudo da psicopatologia e da fisiopatologia psíquica. Não vejo uma preocupação maior dos psicanalistas com o diagnóstico nem com estratégias de investigação vinculadas a fisiopatologia da doença diagnosticada. Não entendo porque isso acontece, mas já detectei uma espécie de repugnância classificatória que alguns psicanalistas têm, como se a taxionomia fosse coisa de psiquiatras, e aqueles não quisessem se confundir com estes, pois “a psicanálise estaria muito acima” da psiquiatria. É uma atitude isolacionista danosa para a psicanálise. Os danos teóricos que vêm dessa arrogância de superioridade são imensos. A psicanálise necessita permutar com outras disciplinas (a psiquiatria, a antropologia, a sociologia, a filosofia da ciência, a psicologia evolucionista, a psicologia cognitiva, a epistemologia e a neurofisiologia principalmente) para se tornar um conhecimento confiável.
4. Dano Terapêutico.
O assunto da eficácia terapêutica da psicanálise é extenso e controvertido. Temos recebido críticas, muitas pertinentes, sobre os prazos com que trabalhamos e o pouco efeito de cura que conseguimos. Muitos psicanalistas argumentam em favor de sua falta de compromisso com a eficácia terapêutica, olhando a psicanálise como apenas um instrumento de reflexão sobre a vida dos pacientes. Alguns mesmo advogam seu descompromisso com o alívio do sofrimento dos pacientes, tomando até o critério reverso. Numa expressão típica, um paciente pode afirmar que “hoje a análise foi muito boa: saí rastejando da sessão, aos prantos, arrasado”. Como meu assunto se restringe aqui ao dano terapêutico causado pela perversão de domínio-submissão induzida pelo psicanalista na prática clínica, vamos considerar as relações de causa e efeito nessa área. Como se forma uma doença psíquica? Retomemos as séries complementares de Freud: desejo fixado pela repressão primária + trauma atual (o que despertaria o desejo fixado) + conflito entre o desejo despertado e as proibições superegóicas = formação de uma solução de compromisso, via nova repressão, que atenda em parte o desejo fixado e em parte as exigências do superego: o sintoma neurótico. Qual é a meta habitual de investigação da psicanálise? Tornar consciente o desejo fixado durante o drama do complexo de Édipo e de sua dissolução pela formação do superego. Esse desejo está reprimido pelo horror que causa ao paciente. Quando ouço dizer que a “análise foi ótima porque saí arrasado”, penso que o psicanalista, através de seus artifícios, “pegou” o paciente e revelou-se para ele o desejo fixado com todo seu horror. O motivo do sofrimento do paciente seria “ouvir duras verdades” a respeito de si, e assumir o horror de seu desejo. Assim sendo, o psicanalista está endossando que o desejo fixado é realmente um horror. Isso é semelhante a revelar a Anna O. seu desejo incestuoso em relação ao pai mas não investigar como esse desejo foi construído, quer ao longo de sua infância, quer durante o tempo que se subtraiu da vida de uma menina para atrelá-la à cabeceira de um pai doente. Descontextualizado, o desejo continua horroroso, o potencial de repetição do sintoma segue intacto porque a estrutura do superego continua inquestionada.
É aqui que entra o dano terapêutico da perversão de domínio-submissão: estará o psicanalista, que assume tal postura, em condições de questionar a construção do superego de seus pacientes, se ele próprio é um representante assumido e desejado desse mesmo superego? Um psicanalista que endossa o superego como corregedor de costumes fatalmente pretenderá que, tornados conscientes os desejos, o paciente os abandone, reconhecendo e assumindo a castração, vale dizer, aceitando o que lhe diz seu próprio superego sem questionar a formação de suas leis. Ora, o arrependimento dos pecados sem questionar suas causas e as leis que os chamam de pecados é o mesmo caminho que a Igreja Católica vem tentando para corrigir os pecadores, sem o menor sucesso, há dois milênios. Sem o menor sucesso para o “pecador”, que volta sempre a pecar. Mas com grande sucesso para a instituição religiosa, porque ele volta sempre a confessar.
Não é à toa que Freud se desiludiu com a eficácia terapêutica da psicanálise, chegando no fim da vida a sonhar com um futuro onde drogas bioquímicas deixariam a psicanálise livre da embaraçosa tarefa de tentar curar os pacientes de seus sintomas para que ela pudesse se dedicar aos seus aplicativos mais sublimes, de especulação cultural.
Não é à toa que surgiu, na teoria da investigação psicanalítica, a história da quinta resistência. Essa resistência, chamada resistência do id, ou “leito de pedra”, ou compulsão à repetição, “fruto do irredutível impulso de morte”, consistiria no fato de que, a despeito de o psicanalista ter investigado tudo que podia investigar, escavado até chegar ao tal leito de pedra, sem nada mais a escavar, o paciente continuava a ter sintomas. Tal resistência até pode ser que exista. Mas nenhum psicanalista, que preze a confiabilidade da psicanálise como forma de conhecimento, deveria se valer dela como explicação para seu fracasso terapêutico. Então a psicanálise é perfeita, o defeito é do paciente? O bem-estar da instituição é mais importante que o do paciente? Isso equivaleria a usar o mesmo tipo de explicação ad hoc que os previsores de Casimiro de Abreu usaram para a ausência dos extraterrestres. Não faz da psicanálise um conhecimento confiável. Se um psicanalista quer ser confiável, quer buscar algo próximo da verdade, diante de um fracasso terapêutico precisa ter a humildade de se perguntar onde está seu erro, ou o da psicanálise que aprendeu.
Como essa perversão começou?
A hipótese que faço é que essa perversão começou com Freud. Não por maldade ou má intenção, mas por causa das circunstâncias em que viveu, que é como, de resto, acredito nascerem todas as perversões. A magnífica ambivalência de seu gênio o fez ser um cientista honesto e perspicaz, ao mesmo tempo um tirano institucional; um revolucionário na concepção da alma e um submisso ansioso por aprovação da Academia vienense. Freud era capaz de se questionar, de pensar que estava errado (como no caso da negativa, ou da origem da angústia, que inicialmente pensava ser causada pela repressão e depois descobriu que, ao contrário, era a causadora da repressão – Verdrängung), ou no máximo aceitar algum reparo vindo de Fliess. Mas sabemos como recusou com mão de ferro os reparos vindos de seus discípulos. Adler, Jung, Ferenkzi, Rank e o brilhante jovem Victor Tausk sentiram com maior ou menor intensidade o peso dessa mão. No entanto recuou diante da grita acadêmica contra a etiologia da histeria: o abuso sexual na infância não passaria de “fantasias”. Ponhamo-nos em seu lugar: Freud era um ambicioso judeu de origem pobre, fascinado pela glória acessível de uma das nobrezas mais sedutoras da história: o título de Herr Professor da academia de ciências da Viena do século passado. Dificilmente podemos entender hoje essa sedução. Não há lugar social tão reverenciado, inquestionado e arrogante de grandeza e importância que se lhe compare. Numa época onde a ciência parecia ter chegado para substituir a religião, o Herr Professor era mais que um papa, era um semideus. A relação médico-paciente de um Herr Professor pode ter um símile hoje na de um cirurgião cardiovascular, isso se levarmos em conta que o paciente estará anestesiado, completamente submisso e já de tórax aberto, esperando a entrada triunfal da estrela. Freud, no entanto, deu um passo decisivo para longe do domínio-submissão ao se descobrir mau hipnotizador (onde o domínio-submissão é a base) e ao propor a livre associação de idéias a seus pacientes. Contou, divertido e tolerante, da paciente que o mandou calar-se, porque estava interrompendo sua “limpeza de chaminé”. Um passo em direção ao domínio-submissão ao impor o divã para atender a uma conveniência sua (ele se incomodava com os pacientes a encará-lo). Outro passo na mesma direção ao se irritar com a descoberta das resistências, ao tentar vencê-las com a força de sua autoridade. Um passo extraordinário para longe do domínio-submissão ao entender que as resistências tinham um conteúdo histórico, que eram uma notável fonte de material de investigação, que não eram má-vontade dos pacientes, mas sua história inconsciente codificada, tal como os sintomas.
Assim ia Freud construindo sua teoria, dois para cá, dois para lá em sua valsa com o domínio-submissão. Mas isso é o que acontece com todos nós, afinal, em nossa relação com a cultura. O que poderia ter pesado em direção ao domínio-submissão no caso de Freud e a psicanálise clínica? Penso ter sido sua condição de nouveau. O calouro, o estreante, o aprendiz, o recém-chegado, o pretendente, o nouveau-riche e todos os demais nouveaux precisam de acolhimento e tolerância para sua insipiência, para terem o direito de ser e continuar sendo aprendizes. Freud não teve nada disso. E ele não era apenas estreante entre os acadêmicos. Tinha a ousadia de apresentar um conhecimento estreante. Morria de medo de ser visto como um charlatão, e de sua psicanálise como um reles conhecimento judeu. Tanto que exultou com a adesão de Jung, um cristão respeitado.
O maior risco que um aspirante corre ao não ser bem acolhido, além do de se abater pela humilhação, é o de se tornar um snob. Eram chamados snobs os alunos dos internatos da classe alta inglesa que, por não serem de origem nobre, tinham a abreviatura s. nob. (sine nobilitas = sem nobreza) aposta a seus nomes nos registros da escola. Eram justamente esses que, por insegurança social, exageravam na postura que eles pensavam ser própria da nobreza. Era uma formação reativa ao horror que tinham por sua origem “humilde”.
Penso ter sido isso que acometeu a Freud. Inseguro do conteúdo de seu bolo psicanalítico, temeroso de que ele pudesse ser destruído, exagerou no confeito. Era capaz de lidar sozinho com sua teoria como quem constrói um brinquedo com blocos de Lego: tolerante com sua imperfeição, tirava e recolocava melhor os blocos com facilidade. Foi o que fez, por exemplo, no caso da teoria da angústia. Mas quando tinha que apresentar sua psicanálise para a academia e para os discípulos, atirava sobre seus blocos de Lego baldes de superbonder. Apresentava-a como pronta, perfeita e inquestionável. As críticas pareciam-lhe tentativas de destruição (e muitas provavelmente foram), crimes de lesa-majestade. Criou uma instituição vigilante e poderosa para cuidar de seu bolo. Ora, sabemos com que zelo a IPA vem cuidando para que ninguém mexa nesse bolo e nos documentos originais da psicanálise. Para que ninguém mexa em nada que possa arranhar o pesado confeito com que a psicanálise se cobriu todos esses anos. Exigiu que todos os aspirantes se submetessem à psicanálise pessoal como condição para sua formação.
E aqui chegamos ao final dessa discussão. Tenho claro que me dirijo a aspirantes de psicanálise. Quero que eles tenham claro sua condição de nouveaux e saibam de seu direito à incompletude e à condição de aprendizes. Eles vivem o rito de passagem que é sua psicanálise pessoal, requisito de sua formação. Este é o momento crucial por onde penso ter se perpetuado a perversão de domínio-submissão que tanto dano tem causado à psicanálise. Um paciente comum pode mandar seu psicanalista às favas se achar que ele abusa de poder. Será que um aspirante tem tamanha liberdade? As chances são de que ele morra de medo de discordar e que se submeta. Precisamos partilhar essa responsabilidade, aspirantes e psicanalistas formadores. Precisamos acolher com humildade científica, com certeza de nossa eterna incompletude a ignorância e o erro, o questionamento e a reformulação teórica. A psicanálise viveu o drama de qualquer criança: não poder escolher o pacote cultural que recebe ao nascer e ter que lidar com ele. Posso entender sua insegurança infantil. Mas a grande chance de ter crescido é podermos escolher circunstâncias mais favoráveis para nós, onde a neurose, a perversão e outros mecanismos de defesa não se façam necessários. Isto serve para o indivíduo e serve para a psicanálise. E ela já está bem grandinha e respeitável (às vezes até venerável, o que é danoso para ela) agora para poder se permitir essas alterações.
PS- O palestrante que me seguiu era um psicanalista de renome nacional. A primeira coisa que fez foi me corrigir, pois que Freud nunca havia fundado a IPA, e sim a (e declamou, em alemão, o nome da predescessora da IPA), corroborando assim a minha tese, com sua cereja sobre o topo do confeito.
Rio, 3 de agosto de 1995
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