terça-feira, 24 de novembro de 2020

Artigos: O Confeito e o Bolo

 Artigo escrito para apresentação em mesa redonda da V Jornada Cena de Psicanálise da CENA, psicanálise e cultura RJ

A psicanálise clínica sofre de uma doença perversa de domínio-submissão que tem sido nefasta para sua eficácia terapêutica, seu desenvolvimento teórico e seu instrumental epistemológico. O psicanalista se coloca numa posição superior ao cliente, que, reverente ao senso comum da respeitabilidade da psicanálise, a ele se submete, à sua linguagem estranha se adapta, atropela seu próprio universo cultural para atender ao do psicanalista, formando com ele uma cumplicidade não deliberada por nenhum dos dois que continua a doença perversa de domínio-submissão que já traziam da cultura. Ao se reencenar na psicanálise a doença perversa com a parceria do psicanalista, perde-se o principal fator diagnóstico-terapêutico da perversão: o estranhamento do sintoma. Ao se perder o estranhamento do sintoma, outro critério para a caracterização de um fato psíquico como doença fica igualmente prejudicado: a compulsão deixa de ser desprazerosa, o cliente já não fica mais incomodado com a submissão. E por que ficaria, se o psicanalista também não se incomoda com o domínio?

Aludi a critérios para chamar um fato psíquico de doença porque julgo que essa denominação é ideológica. Dizer que algo é doença psíquica não é nada auto-demonstrativo. Ou pelo menos não é tão auto-demonstrativo quanto dizer que algo é doença física. O critério de doença psíquica varia com a cultura e com a ideologia. Há culturas em que o que chamamos psicose é chamado de iluminação, o que chamaríamos de perversão, como o canibalismo por exemplo, é visto como ritual sagrado. Os seis critérios que proponho para caracterizar um fato psíquico como doença são: estranheza; compulsão; repetição; grande consumo de libido; fixação objetal; satisfação desprazerosa. Isso pode ser bem nítido num ritual da neurose obsessiva, como o lavar as mãos de Lady Macbeth. Ela estranharia sua obsessão, seria mais forte do que ela, teria que lavar-se repetidamente, a impureza de suas mãos ocupava-lhe quase todo o tempo, era sempre o mesmo problema e, ao satisfazer sua compulsão, poderia ter até dor, já que as mãos acabam em carne viva. Ora, no caso da relação de domínio-submissão que acontece na psicanálise clínica, a estranheza e o desconforto que um paciente sente com o domínio do psicanalista vão desaparecendo na medida em que o psicanalista se apresenta como um valor cultural maior do que aqueles da cultura do paciente, diante do qual o paciente deve-se curvar. E ele se curva. É preciso lembrar aqui que o psicanalista já foi paciente um dia, e passou pela mesma diluição de seu desconforto e de sua estranheza frente ao domínio-submissão, mais diluídos ainda se o psicanalista concebeu essa submissão como preço a pagar para ser aceito na profissão. Ele se curvou, perdeu o estranhamento de sua submissão, e agora, infelizmente a está passando adiante, prazerosamente assumindo o papel de dominador. É desta forma que o vassalo, por aspirar a ser tirano, deixa de questionar a tirania.

Estou me dirigindo a psicanalistas em formação, em processo de psicanálise pessoal que alguns chamam de “didática”. Mas esse adjetivo costuma servir como mais um instrumento de domínio: “Meu analista é tão importante que é um didata. Quem sou eu para questioná-lo? Ainda mais que, se ele se irritar comigo, pode barrar minha carreira profissional”. Quando uma situação dessas acontece, eu diria que a tal psicanálise é mesmo didática. Explica didaticamente a perversão que estou querendo demonstrar.

Aqui me vejo na necessidade de definir perversão. Considero essa necessidade como fruto das restrições de natureza teórica que a psicanálise sofre por causa da própria perversão que a acomete, um dos efeitos que citei no início desse artigo. Se eu estivesse mencionando uma doença da esfera da medicina clínica, poderia supor que o leitor estivesse familiarizado com os tratados de patologia e de fisiopatologia, onde tal doença estaria suficientemente descrita em suas características de etiologia, sinais, sintomas e funcionamento, de tal forma que não me veria obrigado a entrar nesses pormenores. Em psicanálise, tais coisas não podem ser chamadas pormenores. São “pormaiores”, dada a nossa deficiência em tratados de psicopatologia psicanalítica, nosso desconhecimento de fisiopatologia das doenças psíquicas. Percebo que a concepção de psicopatologia diverge a tal ponto de psicanalista para psicanalista que me vejo na necessidade de parar a cada citação de doença para explicar o que quero dizer com tal termo.

Proponho uma definição de perversão. Que ela seja entendida como o uso sistemático e compulsivo de uma combinação específica de mecanismos de defesa contra as ameaças do superego: a renegação/cisão do ego (Verleugnung/Ichspaltung – ver as definições no Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche & Pontalis), quando o indivíduo recusa, apesar de conhecê-las, as ameaças que o mundo externo (aqui representado pelo superego) lhe faz face a seu desejo de operar algum impulso parcial, e abre um território em seu ego onde, não só as ameaças não funcionem, como ele possa satisfazer dois impulsos condenados ao mesmo tempo: aquele que lhe estiver interessando no momento (no caso, o de domínio-submissão), mais o de se vingar do domínio que seu próprio superego exerce sobre ele. Proponho ainda que se desatrele, como condição necessária, o conceito de perversão do orgasmo ou de práticas sexuais, caso em que se perderia toda uma gama de sutilezas de representação psíquica que esta definição proposta permite. Com esta definição, quero que a perversão possa ser vista como um desdobramento da relação que o indivíduo tem com seu próprio superego, relação sadomasoquista de domínio e submissão, relação esta que está fadada a se repetir dentro da psicanálise clínica, a se manter a maneira em que ela se encontra hoje.

A doença perversa de domínio-submissão se manifesta na psicanálise principalmente através da postura e do comportamento do psicanalista. Em nome da neutralidade, o psicanalista envia sinais comportamentais que a cultura nos ensinou a vida inteira como sendo típicos de quem se arroga superioridade. Aqui precisamos da ajuda da antropologia para entender os atropelos de significados culturais feitos pelo psicanalista em nome de sua ciência. O silêncio do psicanalista elimina sua mais elementar cordialidade, sua “boa educação”. Em nossa cultura, a pessoa que reage às perguntas encarando a outra em silêncio está sendo francamente hostil e arrogando-se uma superioridade, como se dissesse que era importante demais para responder e não tinha dado intimidade à outra para que ela lhe dirigisse a palavra. A imposição do divã é outro desses atropelos. Alguém só aceitará falar pessoalmente de costas para outro em duas situações: porque entende, acata e vê vantagens para si nisso, ou por submissão. Como a decisão de usar o divã não é deixada ao cliente, e não é precedida de nenhuma explicação, o uso do divã costuma se dar por imposição, e costuma ser aceito por submissão. O silêncio continua a atropelar os direitos do cliente quando a ele não é dado nenhum referencial do que consiste a psicanálise, nenhum diagnóstico, nenhum prognóstico, nenhuma explicação de estratégia terapêutica, e nenhum direito de estranhar essas ausências, já que a resposta a qualquer queixa que o cliente tenha em relação ao processo será encarada pelo psicanalista como resistência, e as coisas pioram quando o cliente percebe (por dedução) que o psicanalista entende a resistência como insubordinação, má vontade do cliente, que a resistência é algo de que o psicanalista o acusa, algo de que deve se arrepender, se sentir culpado de ter. É um momento em que as interpretações passam a ter força de desqualificações. Se um cliente se queixa de não entender o processo psicanalítico e ouve do psicanalista que isso é uma manifestação de suas dificuldades habituais no trato com figuras de autoridade derivadas de seu pai, a queixa fica automaticamente desqualificada, e mais, a autoridade do psicanalista, tanto quanto a do pai, se torna algo inquestionável, endossada agora pela autoridade do psicanalista. As manifestações do domínio-submissão estão sintetizadas nesses exemplos. Poderíamos pensar em desdobramentos múltiplos na prática clínica, como comunicações do psicanalista que causam perplexidade ao cliente por serem herméticas, ou feitas em jargão, ou em linguagem para iniciados. Por exemplo, alusões ou interpretações referentes às protofantasias, à angústia de castração, à cena primal ou originária, às seduções sofridas pela criança, ao complexo de Édipo, que certos psicanalistas usam como panacéia, como explicativo de tudo, causam em geral grande estranhamento nos clientes. Esse estranhamento não será manifestado se houver submissão, e o psicanalista perderá a oportunidade de perceber quão alheios à vida comum de seus clientes esses conceitos são, quando em estado bruto. A propósito, chamar devaneios ou fantasias de “fantasmas” é um bom exemplo da causação de perplexidade. O cliente entende fantasma como sendo alma do outro mundo, mas como não é provável que o psicanalista esteja se referindo a espíritos, simplesmente não entende e se cala, envergonhado da sua ignorância, que agora, desgraçadamente tomará como sinônimo de inferioridade, exatamente como fez ao longo de toda sua escolaridade. A vergonha da ignorância é um fato gravíssimo para qualquer processo de aprendizado. Representa um dano sério para a psicanálise, para o paciente e para o psicanalista.

Tal perversão causa na psicanálise quatro tipos de dano: sobre a epistemologia da psicanálise; sobre o processo de transferência; sobre a teoria da investigação psicanalítica; sobre sua eficácia terapêutica.

1. O dano epistemológico.

A proposta de qualquer psicanalista que deseje a psicanálise como uma modalidade de conhecimento confiável é poder conferir seus achados de investigação e saber se eles se aproximam da verdade ou não. Deixemos de lado, neste momento, a questão filosófica da Verdade e ponhamo-nos de acordo com o fato de que não podemos prescindir de um desejo de Verdade. Proponho que adotemos, provisoriamente, em relação a Verdade a mesma definição lusitana que o Barão de Itararé deu para o açúcar: “O açúcar é uma substância que dá muito mau gosto ao café…em se não lho botando”. Ora, a psicanálise tem um sério problema epistemológico. Não podemos repetir seus achados em laboratório, não podemos aplicar testes double-blind como se faz para verificar eficácia de remédios (substância x placebo), e finalmente, não temos como garantir que a resposta que o paciente dá para nossas hipóteses realmente mostra seu erro ou seu acerto. Freud lidou com essa questão epistemológica em dois artigos dramáticos pela sua desconcertante ambivalência: A Negativa (1925) e Construções em Análise (1937). No primeiro afirma que a negativa de um paciente a uma hipótese do psicanalista é uma forma de confirmação de sua hipótese. No segundo, doze anos mais tarde, cai em si e diz que, a se tomar isso como verdade, o psicanalista estaria jogando um jogo em que não poderia perder: par, eu ganho; ímpar, você perde.

O que podemos fazer então, pela epistemologia psicanalítica? Podemos recorrer a um dos critérios propostos por Karl Popper em sua filosofia da ciência: o critério de refutação. Segundo Popper, uma hipótese estará dentro da área do conhecimento científico se for facilmente refutável, se for simples testá-la em sua validade. Desta maneira, o cálculo de um eclipse lunar, por exemplo, será facilmente refutado se não acontecer dentro do previsto. O exemplo oposto poderia ser a previsão de pouso de uma nave extraterrestre em Casimiro de Abreu, feita há alguns anos. Chegada a data, não houve sinal da nave. Questionados, os previsores explicaram que a multidão de espectadores havia afugentado os ETs. A previsão era válida? Era errada? Não se pode dizer, porque sua hipótese não era passível de refutação. Não ser passível de refutação não significa, para Popper, ser falso. Significa apenas ser matéria de fé, significa não estar na área do conhecimento científico. Não proponho que o conhecimento científico seja a única forma de conhecimento válida e confiável – e me oponho mesmo a esse endeusamento da ciência que a tem transformado na nova religião dos outrora céticos – mas concordo que sua metodologia pode ser conveniente em nossa busca da Verdade.

Como podemos utilizar o critério de refutação em psicanálise? Tornando a refutação fácil, formulando hipóteses simples, diretas e transparentes, e reconhecendo no paciente o direito permanente de recusá-las. Uma hipótese psicanalítica pode ser aceita ou recusada pelo paciente. Pode ser aceita porque está correta. Mas, se a refutação é difícil, e isso pode se dar porque a hipótese é muito complexa, obscura, não foi bem entendida pelo paciente, ou porque o psicanalista não tolera estar errado, não responde a pedidos de esclarecimento, acredita que a negativa do paciente é, no fundo, uma confirmação, a hipótese pode ser aceita, mesmo falsa, por submissão e seus desdobramentos: vergonha de não ter entendido; mudez por perplexidade; ou aquela frase patética (quando o psicanalista a aceita como confirmação): “Só se for muito inconsciente…” Pode ser recusada por estar errada. Mas, se a questão entre o paciente e o psicanalista é saber quem manda, a hipótese, mesmo correta, pode ser recusada por tentativa de domínio, por birra, por vingança, para não dar o braço a torcer. Ou seja: os principais falseadores da resposta do paciente são a submissão e o domínio!

Eis aí o dano epistemológico que a perversão de domínio-submissão causa à psicanálise. Se o psicanalista tenta torcer o braço do paciente, se ele se posiciona como superior-dominador, se a psicanálise é uma queda-de-braço, o paciente pode ou não dar o braço a torcer. Em ambos os casos o dano epistemológico está feito.

2. Dano Transferencial.

Tornou-se senso comum a estratégia de fazer com que a investigação psicanalítica se dê dentro da neurose de transferência encenada pelo paciente com seu psicanalista. Ele deveria mesmo induzir gradualmente o paciente a convergir sua neurose para dentro do território da psicanálise, seja através de interpretações auto-referentes (interpretar material de sonhos como dizendo respeito ao psicanalista, por exemplo), seja através de dissimuladas repreensões ao paciente quando sua neurose se encenasse com alguém além do psicanalista. Criou-se até um jargão para esse “pecado” do paciente: atuar fora (uma tradução errada do termo acting out, que significa simplesmente encenar).

Acho necessário questionar tal estratégia de investigação. O que acontece quando a doença em questão não é uma neurose de transferência? A melancolia, a depressão, a hipocondria e as neuroses atuais não se encenam por transferência. Quais serão as conseqüências de um psicanalista tentar induzir uma neurose de transferência no paciente quando nesses casos? Igualmente precisamos pensar a resistência por transferência, a chamada transferência negativa, quando o paciente se cala por um mal-estar surgido nele em relação ao psicanalista. Freud descobriu a riqueza de material inconsciente que essa transferência continha, e a colocou entre as muitas fontes de investigação (junto com os sonhos; devaneios; lembranças encobridoras; chistes; atos falhos e sintomas) que deveriam ser examinadas. No famoso capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud nos diz, numa rara e preciosa intervenção epistemológica, que uma hipótese psicanalítica poderia ser considerada correta se fosse confirmada pela investigação de várias dessas fontes, ou seja, se se fizesse o mesmo achado a partir da investigação de sonhos, devaneios, lembranças encobridoras etc. Ora, aqui temos problemas. Primeiro, se o psicanalista só visa a transferência (ou prioriza a indução de neurose de transferência na investigação de outros materiais), como confirmará seus achados a partir de outras fontes? Depois, a postura impositiva de domínio de um psicanalista, sua desconsideração pelos direitos do paciente serão, necessariamente, fonte permanente de mal-estar para o paciente (pelo menos até ele se submeter totalmente). Deve o psicanalista tomar esse mal-estar que ele mesmo causou como resistência por transferência? Deve pensar que o mal-estar vem da neurose do paciente, e que ele, psicanalista, não tem nada a ver com isso? Terá ele o respeito do paciente para investigar de maneira “neutra” um mal-estar que ele mesmo produziu? Não será essa a causa das guerras de silêncio, das sessões mudas em que, mais do que nunca, se evidencia a queda-de-braço entre psicanalista e paciente para saber quem vai falar primeiro, para saber quem está no domínio da situação?

O que penso se tornar nítido nesses casos é um tipo de patologia psíquica da qual nunca ouvi ninguém falar, mas que poderia ser descrita como perversão de transferência, perfeitamente análoga à neurose de transferência: o encontro do dominador com o submisso, do masoquista com o sádico, do exibicionista com o voyeurista, mesmo sabendo que essas relações são dialéticas (o masoquista explícito sendo um sádico sutil em outras horas e assim por diante). Só que, nas perversões de transferências, o objetivo é operar o impulso parcial, e não refletir sobre ele num processo investigatório. Na perversão, ao contrário da neurose, não há conflito íntimo, porque o superego está sendo renegado. Pode um psicanalista refletir sobre uma perversão da qual ele é cúmplice e indutor? Até poderia, se ele reconhecesse sua parte no processo, mas se ele opera a perversão, o mais provável é que isso seja um ponto cego seu.

O mesmo ocorre no chamado amor de transferência. Deveria ser chamado paixão de transferência. O termo latino Passio só admite uma tradução: sofrimento. Esse sofrimento devoto, no qual uma pessoa elege alguém distante, superior e misterioso como foco de sua idealização para venerar, odiar e/ou desejar, encontra no psicanalista tradicional seu objeto mais bem talhado: uma pessoa investida de autoridade, silenciosa, misteriosa, distante e ao mesmo tempo próxima, que se posiciona como superior, a imagem encarnada do superego. Ao tomar essa postura, será que o psicanalista é neutro? É fácil responder esta pergunta: tal postura é violentamente sedutora. Faz parte do be-a-bá elementar da sedução que todos nós aprendemos na escola da vida, e que é a estratégia histérica clássica: parecer difícil e melhor do que se é, distante mas ao mesmo tempo próximo, para despertar a paixão no outro e dizer que o desejo é só dele, que a gente não tem nada a ver com isso. Há psicanalistas que afirmam não existir psicanálise quando não existe a paixão de transferência. Pois podemos fazer aqui a mesma pergunta anterior: pode um psicanalista investigar de maneira “neutra” os conteúdos transferenciais de uma paixão que ele mesmo induziu?

Finalmente quero questionar as chamadas transferências positivas, aquelas que supostamente facilitam o processo de psicanálise e fazem um paciente eleger seu psicanalista. Penso que é função diagnóstica do psicanalista esclarecer os motivos pelos quais o paciente o elegeu. Lembro que elegi meu primeiro psicanalista, já se vão trinta e oito anos, por causa do seu humor sarcástico e irônico. Na época, para mim, isso era sinônimo de inteligência. Hoje, utilizando o que penso sobre psicopatologia, vejo que era sintoma da minha perversão de domínio-submissão encontrando seu parceiro transferencial. Mas não cabia a mim, paciente, entender isso. Cabia ao psicanalista diagnosticar. Não foi diagnosticado nem tratado. Nem poderia: fechou-se um pacto perverso sobre um ponto cego do psicanalista.

3. Dano Teórico.

É claro que, se há dano epistemológico, se há dano transferencial, há dano teórico. Mas meu assunto específico é a relação de domínio-submissão e o dano que ela causa na teoria da investigação na psicanálise clínica. Há quinze anos tive uma conversa intrigante com um amigo. “Gostaria de ir a um psicanalista só para ver se ele conseguia me pegar!”, disse ele. “Como assim, ‘te pegar’?”, respondi, surpreso, “quando você vai a um clínico porque está com uma dor, por acaso vai nessa atitude de desafio, ocultando sintomas para ver se ele consegue ‘te pegar’?” Ele concordou com o absurdo da situação, mas eu não fiquei satisfeito. Havia realmente na psicanálise essa situação de antagonismo, e o psicanalista de fato parecia alguém à espreita, vigiando o menor deslize do paciente para então cair sobre ele dizendo “Ha, ha! Te peguei! Está vendo como você tem monstruosidades ocultas?!” O psicanalista e o paciente ficavam entrincheirados em campos opostos, cada um querendo provar ao outro que ele estava errado, e o psicanalista dispondo de um aparato teórico para “desmascarar” o paciente. O setting psicanalítico era uma praça de guerra disfarçada, e a guerra só visa uma coisa: o domínio de um e a submissão do outro. À desastrosa vergonha de ser ignorante vinha se somar uma outra ainda mais nefasta: a vergonha de errar, de ser pego em erro. O erro, o tão interessante ato falho descoberto por Freud, cheio de possíveis informações sobre as nossas ambivalências, tinha se tornado uma janela para nossos defeitos ocultos, por onde o psicanalista ia olhar para nos “pegar”. Vi gerações de estudantes de psicanálise, psicólogos, analisandos e aculturados atentos para pegar seus colegas em atos falhos que eram imediatamente interpretados, sempre sem material associado, e sempre pelo pior prisma. A vergonha do erro é nefasta para a construção de um conhecimento confiável. E o psicanalista que quer “pegar” o paciente, passará a ter medo de ser ele mesmo “pego” pelo paciente. Passará a ter vergonha e medo de errar, dará excessiva importância negativa ao erro, encarará o erro como fraqueza, e a fraqueza é fatal num jogo de domínio. Pois digo que essa postura em relação ao erro é fatal para a construção de uma teoria confiável. Ela fica melhor num xamã, num feiticeiro ou num papa “infalível” que num psicanalista preocupado com a epistemologia de seu conhecimento.

Já comentei o dano teórico que resulta de centrar a investigação psicanalítica na transferência, e a riqueza de material que se perde ao se subestimar as demais manifestações do inconsciente reprimido. O privilégio da transferência também subestima uma atenção maior que deveria ser dada ao estudo da psicopatologia e da fisiopatologia psíquica. Não vejo uma preocupação maior dos psicanalistas com o diagnóstico nem com estratégias de investigação vinculadas a fisiopatologia da doença diagnosticada. Não entendo porque isso acontece, mas já detectei uma espécie de repugnância classificatória que alguns psicanalistas têm, como se a taxionomia fosse coisa de psiquiatras, e aqueles não quisessem se confundir com estes, pois “a psicanálise estaria muito acima” da psiquiatria. É uma atitude isolacionista danosa para a psicanálise. Os danos teóricos que vêm dessa arrogância de superioridade são imensos. A psicanálise necessita permutar com outras disciplinas (a psiquiatria, a antropologia, a sociologia, a filosofia da ciência, a psicologia evolucionista, a psicologia cognitiva, a epistemologia e a neurofisiologia principalmente) para se tornar um conhecimento confiável.

4. Dano Terapêutico.

O assunto da eficácia terapêutica da psicanálise é extenso e controvertido. Temos recebido críticas, muitas pertinentes, sobre os prazos com que trabalhamos e o pouco efeito de cura que conseguimos. Muitos psicanalistas argumentam em favor de sua falta de compromisso com a eficácia terapêutica, olhando a psicanálise como apenas um instrumento de reflexão sobre a vida dos pacientes. Alguns mesmo advogam seu descompromisso com o alívio do sofrimento dos pacientes, tomando até o critério reverso. Numa expressão típica, um paciente pode afirmar que “hoje a análise foi muito boa: saí rastejando da sessão, aos prantos, arrasado”. Como meu assunto se restringe aqui ao dano terapêutico causado pela perversão de domínio-submissão induzida pelo psicanalista na prática clínica, vamos considerar as relações de causa e efeito nessa área. Como se forma uma doença psíquica? Retomemos as séries complementares de Freud: desejo fixado pela repressão primária + trauma atual (o que despertaria o desejo fixado) + conflito entre o desejo despertado e as proibições superegóicas = formação de uma solução de compromisso, via nova repressão, que atenda em parte o desejo fixado e em parte as exigências do superego: o sintoma neurótico. Qual é a meta habitual de investigação da psicanálise? Tornar consciente o desejo fixado durante o drama do complexo de Édipo e de sua dissolução pela formação do superego. Esse desejo está reprimido pelo horror que causa ao paciente. Quando ouço dizer que a “análise foi ótima porque saí arrasado”, penso que o psicanalista, através de seus artifícios, “pegou” o paciente e revelou-se para ele o desejo fixado com todo seu horror. O motivo do sofrimento do paciente seria “ouvir duras verdades” a respeito de si, e assumir o horror de seu desejo. Assim sendo, o psicanalista está endossando que o desejo fixado é realmente um horror. Isso é semelhante a revelar a Anna O. seu desejo incestuoso em relação ao pai mas não investigar como esse desejo foi construído, quer ao longo de sua infância, quer durante o tempo que se subtraiu da vida de uma menina para atrelá-la à cabeceira de um pai doente. Descontextualizado, o desejo continua horroroso, o potencial de repetição do sintoma segue intacto porque a estrutura do superego continua inquestionada.

É aqui que entra o dano terapêutico da perversão de domínio-submissão: estará o psicanalista, que assume tal postura, em condições de questionar a construção do superego de seus pacientes, se ele próprio é um representante assumido e desejado desse mesmo superego? Um psicanalista que endossa o superego como corregedor de costumes fatalmente pretenderá que, tornados conscientes os desejos, o paciente os abandone, reconhecendo e assumindo a castração, vale dizer, aceitando o que lhe diz seu próprio superego sem questionar a formação de suas leis. Ora, o arrependimento dos pecados sem questionar suas causas e as leis que os chamam de pecados é o mesmo caminho que a Igreja Católica vem tentando para corrigir os pecadores, sem o menor sucesso, há dois milênios. Sem o menor sucesso para o “pecador”, que volta sempre a pecar. Mas com grande sucesso para a instituição religiosa, porque ele volta sempre a confessar.

Não é à toa que Freud se desiludiu com a eficácia terapêutica da psicanálise, chegando no fim da vida a sonhar com um futuro onde drogas bioquímicas deixariam a psicanálise livre da embaraçosa tarefa de tentar curar os pacientes de seus sintomas para que ela pudesse se dedicar aos seus aplicativos mais sublimes, de especulação cultural.

Não é à toa que surgiu, na teoria da investigação psicanalítica, a história da quinta resistência. Essa resistência, chamada resistência do id, ou “leito de pedra”, ou compulsão à repetição, “fruto do irredutível impulso de morte”, consistiria no fato de que, a despeito de o psicanalista ter investigado tudo que podia investigar, escavado até chegar ao tal leito de pedra, sem nada mais a escavar, o paciente continuava a ter sintomas. Tal resistência até pode ser que exista. Mas nenhum psicanalista, que preze a confiabilidade da psicanálise como forma de conhecimento, deveria se valer dela como explicação para seu fracasso terapêutico. Então a psicanálise é perfeita, o defeito é do paciente? O bem-estar da instituição é mais importante que o do paciente? Isso equivaleria a usar o mesmo tipo de explicação ad hoc que os previsores de Casimiro de Abreu usaram para a ausência dos extraterrestres. Não faz da psicanálise um conhecimento confiável. Se um psicanalista quer ser confiável, quer buscar algo próximo da verdade, diante de um fracasso terapêutico precisa ter a humildade de se perguntar onde está seu erro, ou o da psicanálise que aprendeu.

Como essa perversão começou?

A hipótese que faço é que essa perversão começou com Freud. Não por maldade ou má intenção, mas por causa das circunstâncias em que viveu, que é como, de resto, acredito nascerem todas as perversões. A magnífica ambivalência de seu gênio o fez ser um cientista honesto e perspicaz, ao mesmo tempo um tirano institucional; um revolucionário na concepção da alma e um submisso ansioso por aprovação da Academia vienense. Freud era capaz de se questionar, de pensar que estava errado (como no caso da negativa, ou da origem da angústia, que inicialmente pensava ser causada pela repressão e depois descobriu que, ao contrário, era a causadora da repressão – Verdrängung), ou no máximo aceitar algum reparo vindo de Fliess. Mas sabemos como recusou com mão de ferro os reparos vindos de seus discípulos. Adler, Jung, Ferenkzi, Rank e o brilhante jovem Victor Tausk sentiram com maior ou menor intensidade o peso dessa mão. No entanto recuou diante da grita acadêmica contra a etiologia da histeria: o abuso sexual na infância não passaria de “fantasias”. Ponhamo-nos em seu lugar: Freud era um ambicioso judeu de origem pobre, fascinado pela glória acessível de uma das nobrezas mais sedutoras da história: o título de Herr Professor da academia de ciências da Viena do século passado. Dificilmente podemos entender hoje essa sedução. Não há lugar social tão reverenciado, inquestionado e arrogante de grandeza e importância que se lhe compare. Numa época onde a ciência parecia ter chegado para substituir a religião, o Herr Professor era mais que um papa, era um semideus. A relação médico-paciente de um Herr Professor pode ter um símile hoje na de um cirurgião cardiovascular, isso se levarmos em conta que o paciente estará anestesiado, completamente submisso e já de tórax aberto, esperando a entrada triunfal da estrela. Freud, no entanto, deu um passo decisivo para longe do domínio-submissão ao se descobrir mau hipnotizador (onde o domínio-submissão é a base) e ao propor a livre associação de idéias a seus pacientes. Contou, divertido e tolerante, da paciente que o mandou calar-se, porque estava interrompendo sua “limpeza de chaminé”. Um passo em direção ao domínio-submissão ao impor o divã para atender a uma conveniência sua (ele se incomodava com os pacientes a encará-lo). Outro passo na mesma direção ao se irritar com a descoberta das resistências, ao tentar vencê-las com a força de sua autoridade. Um passo extraordinário para longe do domínio-submissão ao entender que as resistências tinham um conteúdo histórico, que eram uma notável fonte de material de investigação, que não eram má-vontade dos pacientes, mas sua história inconsciente codificada, tal como os sintomas.

Assim ia Freud construindo sua teoria, dois para cá, dois para lá em sua valsa com o domínio-submissão. Mas isso é o que acontece com todos nós, afinal, em nossa relação com a cultura. O que poderia ter pesado em direção ao domínio-submissão no caso de Freud e a psicanálise clínica? Penso ter sido sua condição de nouveau. O calouro, o estreante, o aprendiz, o recém-chegado, o pretendente, o nouveau-riche e todos os demais nouveaux precisam de acolhimento e tolerância para sua insipiência, para terem o direito de ser e continuar sendo aprendizes. Freud não teve nada disso. E ele não era apenas estreante entre os acadêmicos. Tinha a ousadia de apresentar um conhecimento estreante. Morria de medo de ser visto como um charlatão, e de sua psicanálise como um reles conhecimento judeu. Tanto que exultou com a adesão de Jung, um cristão respeitado.

O maior risco que um aspirante corre ao não ser bem acolhido, além do de se abater pela humilhação, é o de se tornar um snob. Eram chamados snobs os alunos dos internatos da classe alta inglesa que, por não serem de origem nobre, tinham a abreviatura s. nob. (sine nobilitas = sem nobreza) aposta a seus nomes nos registros da escola. Eram justamente esses que, por insegurança social, exageravam na postura que eles pensavam ser própria da nobreza. Era uma formação reativa ao horror que tinham por sua origem “humilde”.

Penso ter sido isso que acometeu a Freud. Inseguro do conteúdo de seu bolo psicanalítico, temeroso de que ele pudesse ser destruído, exagerou no confeito. Era capaz de lidar sozinho com sua teoria como quem constrói um brinquedo com blocos de Lego: tolerante com sua imperfeição, tirava e recolocava melhor os blocos com facilidade. Foi o que fez, por exemplo, no caso da teoria da angústia. Mas quando tinha que apresentar sua psicanálise para a academia e para os discípulos, atirava sobre seus blocos de Lego baldes de superbonder. Apresentava-a como pronta, perfeita e inquestionável. As críticas pareciam-lhe tentativas de destruição (e muitas provavelmente foram), crimes de lesa-majestade. Criou uma instituição vigilante e poderosa para cuidar de seu bolo. Ora, sabemos com que zelo a IPA vem cuidando para que ninguém mexa nesse bolo e nos documentos originais da psicanálise. Para que ninguém mexa em nada que possa arranhar o pesado confeito com que a psicanálise se cobriu todos esses anos. Exigiu que todos os aspirantes se submetessem à psicanálise pessoal como condição para sua formação.

E aqui chegamos ao final dessa discussão. Tenho claro que me dirijo a aspirantes de psicanálise. Quero que eles tenham claro sua condição de nouveaux e saibam de seu direito à incompletude e à condição de aprendizes. Eles vivem o rito de passagem que é sua psicanálise pessoal, requisito de sua formação. Este é o momento crucial por onde penso ter se perpetuado a perversão de domínio-submissão que tanto dano tem causado à psicanálise. Um paciente comum pode mandar seu psicanalista às favas se achar que ele abusa de poder. Será que um aspirante tem tamanha liberdade? As chances são de que ele morra de medo de discordar e que se submeta. Precisamos partilhar essa responsabilidade, aspirantes e psicanalistas formadores. Precisamos acolher com humildade científica, com certeza de nossa eterna incompletude a ignorância e o erro, o questionamento e a reformulação teórica. A psicanálise viveu o drama de qualquer criança: não poder escolher o pacote cultural que recebe ao nascer e ter que lidar com ele. Posso entender sua insegurança infantil. Mas a grande chance de ter crescido é podermos escolher circunstâncias mais favoráveis para nós, onde a neurose, a perversão e outros mecanismos de defesa não se façam necessários. Isto serve para o indivíduo e serve para a psicanálise. E ela já está bem grandinha e respeitável (às vezes até venerável, o que é danoso para ela) agora para poder se permitir essas alterações.

PS- O palestrante que me seguiu era um psicanalista de renome nacional. A primeira coisa que fez foi me corrigir, pois que Freud nunca havia fundado a IPA, e sim a (e declamou, em alemão, o nome da predescessora da IPA), corroborando assim a minha tese, com sua cereja sobre o topo do confeito.

Rio, 3 de agosto de 1995

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Artigos: A Obesidade Mórbida Mora Na Alma

 Artigo Encomendado

Antes de mais nada quero dizer que fui convidado para comentar o drama que envolve o antes e o depois do tratamento cirúrgico da obesidade mórbida sem nunca ter feito parte de qualquer equipe multidisciplinar que tratasse do assunto, sem ser qualquer espécie de especialista na doença. Minhas credenciais se resumem ao fato de ser um psicanalista admirado por quem me convidou (um ilustre portador da doença, operado) pelo fato de me debruçar com humildade, carinho, vontade de entender e perseverança sobre o que há de mais complexo sobre a face da terra, a mente humana, e também por, sendo eu mesmo um eterno candidato à obesidade mórbida, ter sentido na pele o que ela é, além de haver tratado alguns pacientes com essa e com doenças semelhantes. Isto posto, vamos lá.

O fato de existir uma cirurgia de redução gastrointestinal é uma esperança de vida integrada ao mundo, ou de vida, simplesmente, para quem sofre de obesidade mórbida. A questão é que quem se opera não deixa de sofrer do problema que o levou àquela condição de risco. Fizeram a aposta de trocar a morte certa pela doença (ou a vida miserável e brutalmente limitada que esperava aquela morte) pelo risco da cirurgia, e muitos venceram essa aposta e estão aí, sobreviventes e esperançosos. No entanto a doença de origem está lá, à espreita.

Alguns pacientes vêem a cirurgia como um tamanho divisor de águas em suas vidas que buscam, como os que experimentaram a quase morte por um enfarte ou acidente, dar um novo e melhor rumo a suas existências. Tenho certeza que a grande maioria que se opera deseja isso. Para ser bem sucedido é preciso conhecer o inimigo, pois ele não foi removido com a cirurgia, já que mora principalmente na alma (aqui sem nenhuma conotação religiosa, simplesmente um nome que traduz nosso psiquismo, esse complexo de programas mentais que envolve algumas coisas compreensíveis, outras não, pelo menos no presente, todas morando no cérebro).

O que sabemos do inimigo? O que leva uma pessoa a comer tanto, ao ponto de se transformar num ser que vive as humilhações e os sofrimentos que, estou certo, já foram descritos o suficiente neste livro? Para começar, assim como o câncer, nosso inimigo aqui não é fácil de combater porque não é único, não tem apenas um fator. Isso implica ver cada pessoa como única e aprender sobre ela, conhecer o possível sobre cada fator que constitui sua doença. É melhor que isso comece antes da cirurgia, penso eu, pois a sedução para se imaginá-la como um passe de mágica, como um toque da varinha de condão que faça sumir todos os problemas, é muito grande. É importante que o paciente absorva o realismo de entender a cirurgia como um expediente heróico para salvar sua vida e dar-lhe uma nova chance de viver melhor. É preciso que ele não a entenda como a cura definitiva de seus males. É necessário focalizar e dar prioridade à compreensão de sua doença, que certamente o acompanhará pelo resto de seus dias.

Uma pergunta é comum nesses casos: quais os fatores orgânicos da doença e quais os psicológicos? Essa é uma pergunta que tinha cabimento do século passado para trás. Hoje sabemos que fatores psicológicos são fatores orgânicos: o cérebro é um órgão. Todos os seus males são bio-eletroquímicos, o diabo é que a neurociência está ainda engatinhando, basta dizer que o tratamento dos vícios ainda precisa desesperadamente da abstinência para funcionar. Na verdade a abstinência continua sendo seu carro-chefe, mesmo quando se trata de um vício de comida, coisa de que, teoricamente, não podemos nos abster.

A pergunta impertinente do parágrafo anterior, portanto, ainda precisa ser respondida. Vou tentar respondê-la. Apesar de cada vez mais podermos detectar causas orgânicas, ou pelo menos fatores orgânicos da obesidade mórbida, como um demoníaco metabolismo encravado no genoma, hereditário, pois, dois fatores psicológicos devem ser sempre procurados nela: depressão e o vício. Cabe dizer que, apesar de nem todo viciado ter uma depressão de base, todo deprimido é candidato a se viciar, não importa em quê, já que o mecanismo do vício produz um alívio momentâneo na dor da depressão.

Por que eu uso uma palavra tão feia (vício) nesses tempos tão politicamente corretos? Não daria para usar “adição”, “dependência química” ou outra menos agressiva? Um eufemismozinho? Aí é que está. Faz parte do tratamento dos vícios encarar a dura realidade, mesmo sabendo que eles não são “falta de vergonha na cara”, e sim uma doença cerebral, pois eles se incorporam de tal modo à nossa maneira de pensar que acabam por influenciar o nosso senso de ética, acabam por afetar nossa “vergonha na cara”. Os próprios Alcoólicos Anônimos, que inventaram esse eufemismo para se intitular, quando se levantam para dar depoimento nunca se declaram “sou alcoólico” e sim “alcoólatra”, porque é mais duro e verdadeiro. Você pode argumentar que a vergonha na cara afetada é efeito, e não causa. É verdade, mas depois de um certo tempo causa e efeito estão inapelavelmente misturados num… círculo vicioso, e a dignidade perdida (sempre se perde grande parte dela, senão toda, quando o vício ganha terreno) só será recuperada, junto com o senso de ética, a integridade moral, a auto admiração e estima, através de uma guerra sem trégua ao vício dentro de nós, essa mesma que esperaríamos ver o Estado executar nas cidades e no país. A metáfora vale também porque liberados os recursos que o vício consome, podemos com eles construir uma vida mais bonita para nós.

Vamos então àquela pergunta do “como é que a pessoa pode chegar a ficar daquele jeito horrível?” Eu tenho um cunhado que disse à minha irmã quando ela quis fazer plástica do rosto: “Olha que plástica é pior do que lepra!” Mas como? “É que lepra é aos poucos e você vai se acostumando, e na plástica você pode virar um monstro amanhã”. A obesidade mórbida é, portanto, como a lepra, aos poucos, e você vai se acostumando a não olhar para o espelho, a não se ver fotografado ou filmado, conservando a imagem mental que a gente tem de si mesmo e que sempre se choca com a “realidade” quando nos deparamos com esses registros. Você não deixa de alcançar a bunda para se limpar de um dia para o outro. É aos poucos que se passa para o bidê, e do bidê para o chuveiro com um escovão, e disso para o estágio final, que é entubar a ajuda de terceiros. Mas é o tal negócio: nesse processo a dignidade, a auto admiração e estima, a integridade e finalmente o senso de ética vão lentamente para o brejo.

É, portanto, o vício nosso primeiro alvo a entender. Ele se deriva de uma propensão genética (o gatilho) que alguns têm, e da vontade de obter prazer imediato, livrando-se momentaneamente de todos os problemas e preocupações, coisa que a humanidade toda tem. Quando esses dois fatores se somam temos uma dupla dinâmica quase imbatível. O que eu gostaria que existisse e que a tecnologia ainda está a nos dever? De uma terapia genética que desarmasse aquele gatilho. Estamos atrasados, pois? É verdade, e não nos resta nada a fazer senão esperar e usar dos recursos que dispomos hoje, entre eles a velha e desagradável abstinência. Posso ouvir uma pergunta (e a tenho ouvido de fato, de muitos pacientes): “você não gostaria de uma pílula que nos permitisse comer e beber à vontade sem nenhuma conseqüência danosa à saúde, sem engordar ou perder a cabeça pela embriaguez?” A resposta é curiosa: gostaria, mas não quero. Explico: gostaria, sim, porque me daria imenso gosto, inexcedível prazer. Acho que o pão francês quente com manteiga gelada é a maior invenção da humanidade, além de ser um símbolo básico de suas conquistas maiores (a agricultura e a pecuária), aquilo que permitiu a vida urbana e a filosofia.

Mas não quero, porque faz parte do nosso processo civilizatório a conquista do prazer mediato. O prazer que resulta do investimento, da construção, do aprendizado, da solidariedade, da amizade, do amor, da convivência democrática, da justiça, enfim, de todos os valores éticos que não podem ser alcançados com um estalar de dedos, que não são, portanto, imediatos. Dêem-me aquela pílula e eu passarei o resto dos meus dias (se tiver recursos para tanto) dentro de um quarto lendo, comendo pão com manteiga e bebendo leite achocolatado com açúcar, como fiz tanto na minha adolescência. Resistirei a ver meus filhos e minha mulher, pois eles podem atrasar meu prazer comilão, enfim, essas coisas que você está cansado de saber.

O paciente operado pensa freqüentemente que encontrou as tais duas pílulas na cirurgia e é por isso que muitos se dedicam a testar seus limites, a jogar com seus estômagos diminutos uma queda de braço em busca de realizar seu sonho de estabelecer residência no prazer imediato sem parecer à sociedade que é o maior dos espertos: o comedor compulsivo que “nem parece”. Como disse, o vício está lá, e não foi curado com a cirurgia.

Mas se uma pessoa operada quer combater o vício, e já que a abstinência é ainda a arma chave desse combate, como pode fazer funcionar a abstinência num território em que ela parece impossível, o comer? Ela não pode aprender a comer de tudo com moderação? Não pode operar uma “reeducação” alimentar? Para mim que vim sanfonando o peso vida afora, e que antes de ser psicanalista fui gastrenterologista e nutrólogo, vou ser sincero: falar de moderação e de reeducação para um viciado é pura balela (ou, como se diz em inglês, bullshit), se não for simples crueldade. A saída que encontrei daria um best-seller fantástico, já que os primeiros das listas americanas de livros mais vendidos falam de dieta, não fosse o fato de caber em quatro linhas, e aí eu me ferrei: não se escreve um livro com quatro linhas, nem eu tenho a cara de pau de encher lingüiça (falando em comida…) para que essas quatro linhas virem um livro. Mas como isto aqui é um mero capítulo de outro livro, aqui vai minha “descoberta”:

Álcool zero. Todo comedor sabe que qualquer álcool funciona como aperitivo, dá uma vontade de comer louca. E muito álcool produz verdadeiras devastações alimentares.

Não coma nada que seja principalmente carboidrato. A abstinência possível do comedor compulsivo é a do carboidrato, a comida mais fácil de obter (nas prateleiras de supermercados e padarias) e de segurar sem ao menos olhar, sem precisar de preparo, cozinheira nem nada. Estou convencido de que o comedor compulsivo é viciado em carboidrato. Nunca conheci ninguém viciado em aipo.

Faça um bom prato, mas não repita jamais. Entre as refeições, só líquidos de baixa caloria (refrigerantes, café, e o meu preferido: chás variados com um pouco de leite, porque é quentinho e acarinha o estômago). Sei que os operados não podem se dar ao luxo de seguir este ítem, e sinceramente não sei o que aconselhar para substitui-lo.

Get a life! Arranje uma vida para viver com sua recém adquirida dignidade, uma vida de construção de prazeres mediatos, uma vida com lugar para a beleza. A participação em grupos de apoio pode bem fazer parte dela, pois (eu sei bem disso) ajudar os outros é ajudar a si mesmo.

As medidas são drásticas, sim, mas a morte é mais, e a vida sem dignidade não vale a pena. Venho sendo cobaia dessas medidas e me dando muito bem com isso, como em nenhum tratamento antes. Porém tenho consciência de que não existe uma única obesidade mórbida e o que serve para alguns não servirá para outros.

Por fim uma palavra sobre a depressão. Não existe tempo melhor na história da humanidade para se ter depressão que o tempo atual. Os remédios são mais eficazes e mais limpos (com menos efeitos colaterais) do que nunca. E o progresso nesse campo continua. Como a depressão freqüentemente está na base das doenças compulsivas e dos vícios, os pacientes de obesidade mórbida que forem depressivos lucrarão imensamente com o tratamento medicamentoso e o acompanhamento psicoterapêutico para perseguirem o ítem 4 da minha lista: viver melhor, que é o que todos queremos.

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Em 13 de outubro de 2003, por solicitação de Andréa Ferreira


Diversos: Centenário (Texto em homenagem a Fabio Penna da Veiga)

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Dr. Fabio,

“A alcantácea túrcupe emana, cingindo, púcara, os zimbóreos de Altamana”.

Assim começavam os bons discursos na época em que você nasceu. Mas os tempos são outros (graças a Deus), de modo que o meu discurso não é desses. Então vamos lá:

Um brasileiro perguntou a seu amigo português:

— Você quer ir comigo a uma festa de 15 anos?

E o português:

— Escusas, mas não posso me ausentar por tanto tempo.

Pois estamos aqui, numa festa de 100 anos. Convido vocês a me acompanharem numa viagem pelo tempo:

 O que é ser centenário em 2005:

  • É ter nascido apenas quatro anos depois da morte da Rainha Victória

  • É já andar de velocípede e comer bife quando o Oscar Niemeyer e a Dercy Gonçalves nasceram

  • É ter um ano quando Santos Dumont voou com o 14bis

  • É ter 4 anos quando Carmen Miranda nasceu e 50 quando ela morreu

  • É ter 12 anos quando Kennedy nasceu, e 58 quando ele foi assassinado

  • ter sido governado por 36 presidentes da república, 3 juntas militares e 4 primeiros ministros.

  • ter sido contemporâneo de 9 papas

  • ter  12 anos quando Caruso se apresentou no Rio, e 16 quando ele morreu

  • ter nascido no ano em que Sarah Bernhardt quebrou a perna no teatro Lyrico do Rio, e 18 anos quando ela morreu

  • ter quatro anos quando o teatro Municipal foi inaugurado

  • ter esperado 16 anos para ver seu primeiro cinema falado

  • ter andado de tílburi, landau, victórias e outros veículos de tração animal, como meios de transporte comuns, e não turísticos

  • ter escapado com vida da epidemia mundial de gripe espanhola de 1918 que matou mais de 20 milhões

  • ter presenciado o nascimento do avião, da geladeira; do rádio, do raio X, do ar-condicionado; da televisão, do computador; ter passado do gramofone movido à corda, do cilindro gravado para o disco de um lado só, chamado chapa, ao 78 de dois lados, já tocado na victrola elétrica, ao LP de vinil de 33 rpm, ao surgimento do estereofônico, da fita cassete; do CD; do vídeo e do DVD, e ter desfrutado de cada um deles

  • ser centenário é ter visto o Brasil passar por várias crises, que fazem a atual não assustá-lo. Viu os 18 do forte com 19 anos, o tenentismo. Viu o golpe de Vargas acabar com a República Velha de seu avô, quando os presidentes saíam do poder mais pobres do que quando entravam; viu uma guerra civil em que brasileiros matavam brasileiros, a revolução constitucionalista de 1932; viu Plínio Salgado dizendo anauê para imitar Hitler; viu o mar de lama que fez Getúlio se suicidar; viu duas ditaduras: a de Vargas durando 15 anos, a dos militares durando 21; viu a renúncia de Jânio; viu a tentativa de Jango de transformar o país numa república sindicalista aos moldes de Perón; viu Sarney conduzindo uma economia de 80% de inflação ao mês; viu Collor seqüestrando a poupança dos brasileiros (a dele, inclusive); viu Zélia Cardoso de Mello conduzindo a economia; viu o impedimento do Collor; e last, but not the least, viu a eleição e o governo de Lula

  • ser centenário é ter 16 anos quando a princesa Isabel morreu

  • Ter 49 anos quando Getúlio Vargas se suicidou

  • Ter 21 anos quando nasceu Fidel Castro

  • Ter 22 quando Charles Lindenberg cruzou o Atlântico

  • Ele tinha 12 anos quando aconteceu a revolução soviética e 13 quando o czar e sua família foram assassinados

  • 9 anos quando eclodiu a 1a guerra mundial e 40 quando a segunda guerra terminou

  • é ter nascido no mesmo ano que Sartre; Greta Garbo e Howard Hughes

  • É ter sido contemporâneo, por exemplo:
    Dos escritores Julio Verne; sir Arthur Conan Doyle; Rudyard Kypling; Machado de Assis; Euclides da Cunha; Anatole France; Fernando Pessoa; Franz Kafka e Bernard Shaw;
    Dos políticos Ruy Barbosa; Teddy Roosevelt; Joaquim Nabuco; Pinheiro Machado e de Lenin;
    Dos pintores Claude Monet; Cézanne; Renoir; Degas; Pedro Américo; Gustav Klimt e Modigliani;
    Dos compositores Puccini; Elgar (de Pompa e Circunstância); Debussy; Chiquinha Gonzaga; Ravel e Rachmaninof;
    E de gente como o Dreyfus (a favor de quem Zola escreveu o “j’accuse”), o xerife Wyatt Earp e Buffalo Bill.

Quando ele nasceu:

  • O império brasileiro havia terminado 16 anos antes. Em termos atuais, um fato tão antigo quanto a eleição do Collor

  • Dom Pedro II havia morrido 6 anos antes

  • No caso específico do Dr. Fabio, ser centenário é ser o mais antigo dos ex-alunos do Sto. Inácio, o decano dos sócios do Fluminense, e o mais idoso engenheiro no Brasil em atividade.

  • Ele estaria com sete anos, e seria provavelmente salvo do naufrágio do Titanic.

  • Por fim, ser centenário é ter sobrevivido a amigos e colegas de colégio e vê-los transformados em placas, como a da  Rua Editor José Olympio, do Viaduto Haroldo Poland ou da Rodovia Amaral Peixoto, e ver seu melhor amigo da vida inteira, seu irmão de coração, o Feliciano, virar a Rua Engenheiro Penna Chaves, transversal da Lopes Quintas. Nas palavras de Machado de Assis, “Os amigos que tenho são novos. Os antigos estão estudando a geologia dos campos santos”.

Entro aqui na segunda parte desse petit mot, que por sorte é a última, antes que ele deixe de ser petit

O HUMOR NA VIDA DO DR. FABIO

Se  há alguma coisa além da genética que pode ter contribuído para meu pai se tornar centenário, essa foi seu humor afiado. Às vezes involuntário. Quando pequeno, e morava no palácio do Catete, divertia-se atirando seus brinquedos pela amurada do terraço, em direção à rua Silveira Martins. Pouco mais tarde, filho do ministro-chefe  da Casa civil (que na época era um cargo ocupado por gente honrada), estava já acostumado às modernidades, como andar de automóvel. Foi quando um mendigo bateu pedindo esmola à porta de sua casa em Petrópolis. Reparando no sapato furado do pedinte, saíu-se com uma solução brilhante: – Por quê o senhor não anda de carro, para poupar os sapatos?

Quando depois que seu primo, o Almirante Penna Botto, desistiu de bombardear Copacabana do destroier em que abrigava o pretendente à presidência, Carlos Luz, deu-se o seguinte diálogo:

Meu pai: Mas almirante, por que o senhor não atirou?

Penna Botto: Ah, Fabio, eu poderia matar inocentes.

Fabio: Almirante, para matar inocentes o senhor iria precisar de muita mira.

Na década de 20 Fabio foi infectado pela epidemia de trocadilhos que assolava o país, considerados então como o máximo da presença de espírito. Os líderes desse movimento eram os freqüentadores da Confeitaria Colombo, entre eles, Bastos Tigre, Emílio de Menezes e Olavo Bilac, protagonistas de um repente que ficou célebre como o “trocadilho dos cereais”: cansado, Emílio levanta-se para se retirar. E aí começa a pândega: “Emílio, não consinto que se evada” diz Bastos Tigre. “Se o fazes, contigo me intrigo!”. Bilac, dando a volta na mesa, empurra Emílio de volta à cadeira, e exclama, exultante: “Sentei-o”. Conformado, Emílio arremata: “Vocês hoje estão com a veia!” Este episódio ganhou recentemente o infame título, derivado da mesma doença da época: “Cereal serial” .

Pois dr. Fabio ficou contaminado para sempre, e toda vez que houve oportunidade, lá vinha ele transformando qualquer assunto pesado numa boutade, o que foi uma grande contribuição para que nós não nos levássemos a sério. Uma crise no congresso que despertou sectarismos e intransigências, fez com que ele dissesse: “Isso é estranho, pois o congresso sempre foi conhecido como uma grande casa de tolerância”. Para os mais novos, casa de tolerância era o nome que se dava então ao que o Ancelmo Góis chama hoje de casa de saliência. Quando seu humor se tornava mais picante, em nome da modéstia, ele usava os trocadilhos franceses, seus amados calembours, sempre tendo D. Lygia a lhe corrigir a pronúncia, o que sempre foi uma brincadeira particular entre eles. Mas também podia usar as charadas. A mais saborosa entre elas, em que o sotaque lusitano é necessário, eu vou ter a ousadia de reproduzir aqui, mas, fique tranqüilo, meu pai, não vou dar a solução*: “abre e fecha sem ter mola, 1 – andam aos pulinhos na mata, 2 – conceito: quisera ter três”.

Seu humor se revelava até nos atos falhos: Fabio adolescente, em casa de seus pais, constatou a chegada de surpresa de uns parentes bem na hora do jantar. Meu avô Edmundo, homem gentil por natureza, entreteve os primos na sala enquanto a família se contorcia de fome. O avô, por fim, chama a família e serve aos parentes um aperitivo. Foi quando meu pai lhes ergueu brinde, e, querendo dizer “à saúde”, disse-lhes “adeusinho”.

Sobre parentes, escrevi em um dos meus livros o episódio em que, num velório, perguntei: “Pai, quem é aquele ali?” E ele: “É um primo longe… mas não o suficiente”. Quero me penitenciar aqui pela minha completa invencionice. Tal coisa nunca aconteceu. Ao contrário, meu pai sempre foi tão devoto à família, e vocês aqui são prova disso, que uma vez, também num funeral, se queixou ao tio Octávio Veiga que era uma vergonha que os parentes só se encontrassem nessas ocasiões. Era preciso combinar uma reunião, um encontro informal. O tio não tinha os pudores do meu pai. Retrucou logo: “É mesmo, Fabio… e que tal no jardim zoológico?”

Dr. Fabio herdou do avô Edmundo a gentileza. Uma vez, escutando por horas a conversa de uma senhora, começou a cabecear de sono. Recuperava-se da cabeceada com um ar atento, ou com uma observação agradável. Numa dessas saiu-se com um “que maravilha!”. A senhora, indignada, disse: “mas Dr. Fabio, eu lhe conto que minha filha grávida foi abandonada pelo marido e o senhor me diz que isso é uma maravilha?” E meu pai, já completamente desperto: “Mas é claro, é ou não é uma maravilha ela ter se livrado de tamanho cafajeste?”

Em outra ocasião não escapou tão fácil. Numa roda de pôquer as cartas lhe vinham cada vez piores. Sem que ele se desse conta, uma viúva, magra, feia, de fartos buços e toda de negro, veio espiar seu jogo. Lá ficou, bem atrás dele, por duas ou três rodadas. Na última, tendo recebido a pior mão da noite, dr. Fabio desabafou: “Um urubu pousou na minha sorte!” Dessa vez não houve conserto.

Quem sabe dominar o humor, em geral, sabe também dominar o drama. Dr. Fabio usou muito o drama em nossa educação. Bom mineiro, nunca jogou dinheiro fora. Portanto, pedir algum para ele sempre foi um sofrimento. Para nós, sem dúvida;

- Pai, me dá 10 reais para ir ao cinema?

Suspeito que para ele não era sofrimento, era só motivo para fazer drama. A face contraída, a mão no peito era de alguém apunhalado. A cada novo argumento nosso, parecia que estávamos torcendo a faca. Afinal, depois de muitos gemidos, o dinheiro saía. Seus próprios gastos eram modestos, mas nunca deixou de nos encantar quando ele vinha da cidade com um pacote da drogaria Granado, cheio de emplastros Sabiá, de Vick vaporub, de polvilho antissético, e de frascos do Pó Pelotense, o desodorante da época.

Esse seu lado de munheca de leitão assado nos ensinou uma lição preciosa: não há nada como a independência financeira. Qualquer coisa era melhor do que pedir dinheiro para o Dr. Fabio.   

No entanto ele proporcionou casa própria a cada um dos filhos, uma generosidade e um empurrão para a independência dos quais sempre seremos gratos. É um gesto que pretendo repetir com meus filhos, tão bom foi para mim. Nela resido até hoje, e dela só pretendo me mudar para a rua general Polidoro, direita de quem desce. A propósito, minha futura residência também foi providenciada por ele.

Mas você pode pensar que o humor do dr. Fabio se embotou com a idade. Pois ouça então essa de um dos mais recentes almoços de domingo. Comentando as últimas declarações do nosso presidente, ele declarou: “Lula não quer ser como Getúlio, que se suicidou; nem como Jânio, que renunciou; nem como Jango, que foi deposto. Ele quer ser como JK, ou seja: prefere morrer esmagado por um ônibus.

Por fim, me lembro da vez em que ele viu uma placa na estrada para um lugar que gostava de ir: “Como viver cem anos em Guarapari”. Naquela hora foi atacado de seu antigo trocadilhismo e respondeu de pronto: “Como viver cem anos? Ora, é muito fácil: com uma bolsa de colostomia”.

Meu pai querido, todos nós temos que lhe agradecer por nos mostrar como viver cem anos de um jeito muito mais feliz e bonito. Do jeito como você os viveu.

FIM


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Apenas para os interessados

(atenção: contém linguagem chula)

*- Solução da charada: Abre e fecha sem ter mola (uma sílaba): cu

Andam aos pulinhos na mata (duas): leões

Conceito: quisera ter três = culhões


Artigos: Em Defesa do Consumidor: Como Escolher Um Psicanalista?

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo publicado na Folha de São Paulo

Antes de mais nada, penso que há uma pergunta a ser respondida, porque eu a ouço muito: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, terapeutas, qual a diferença entre eles?

Psiquiatras:

são médicos que estudam a melhor maneira de ajudar quem está mentalmente perturbado através de remédios. Isto é um espetáculo. A psicofarmacologia avançou muitíssimo nas últimas décadas, e os remédios que temos hoje são tão bons que eu diria: não há melhor momento na história da humanidade do que hoje para ser deprimido, neurótico, ansioso, maníaco, psicótico ou qualquer outro distúrbio que, antigamente, levaria você a um hospício.

Psicólogos:

são estudiosos da “alma”, ou, em termos atuais, do software que roda no cérebro e que aparece como comportamentos, pensamentos e outras perturbações (porque eles estudam como o nosso cérebro funciona e como ele nos perturba). Existem muitas maneiras de estudar isto, e muitos mestres olharam este funcionamento por muitos ângulos.

Psicanalistas:

estes psicólogos derivam da maneira de estudar o software cerebral que Freud inaugurou no século XIX. É claro que eu, como psicanalista que sou, vou me deter mais neste jeito de entender o funcionamento da nossa mente. Freud descobriu que nós éramos tão marcados pela nossa educação e pelas pessoas que nos criaram, que acabávamos por carregar este jeito de viver pelo resto de nossas vidas: se ele era favorável e lógico, ótimo, viveríamos bem; se ele era estranho e cruel, acreditaríamos nele e viveríamos mal (ele não falou quase nada da genética, que constitui 50% do que somos).

Terapeutas:

são pessoas que cuidam (terapia é cuidar, é tratamento) de outras. Por isto você tem fisioterapia, logoterapia, quimioterapia e assim por diante, até ter psicoterapias, feitas por psicoterapeutas, que são pessoas que cuidam de você e de sua maneira mental de funcionar. Os psicanalistas podem ser estudiosos apenas (teóricos), ou psicoterapeutas, aqueles que cuidam de pessoas usando a psicanálise como instrumento. É uma das inúmeras maneiras de psicoterapia.

Mas acho que basta. Meu assunto é como escolher um psicanalista terapeuta, alguém que vai cuidar de você com o instrumental que Freud inventou, alguém que vai te prestar um serviço de saúde. Você o contrata e consome o serviço dele.

“Ai, que barbaridade, pensar o cliente como consumidor!”

Sinto muito se feri suscetibilidades, mas imagino que, se você está lendo um caderno sobre psicanálise, está preparado para ler textos eruditos de que você não vai entender 10%. É uma das coisas que me horrorizam em psicanálise, e que sempre me pareceu uma contradição entre termos. Afinal, a psicanálise veio para explicar ou para confundir?

Clínica: do latim, quer dizer “inclinar-se”, para observar e entender.

Pratico a clínica psicanalítica há 35 anos, e fui consumidor desta prestação de serviço durante oito, com dois psicanalistas diferentes. É. Prestação de serviço mesmo, eu pagava (caro) e recebia 50 minutos de suposta atenção.

Assim como quando fui pai, tentei me lembrar de quando era criança e o que funcionava e o que me irritava no jeito de meus pais, quando fui ser psicanalista, prestei bem atenção no que me fez bem e no que me fez mal quando fui cliente. Para aprender com os erros (evitando-os) e com os acertos de meus psicanalistas (tomando-os como modelo).

Você já viu que vai entender tudo o que eu escrever aqui. Gosto de clareza, de transparência, do que é lógico e razoável. Se você gosta de obscuridades, perplexidades e esoterismos, pode pular este artigo. Não é tua praia.

A coisa é simples assim: quantos psicanalistas são necessários para trocar uma lâmpada? Um só, mas é preciso que a lâmpada queira muito ser trocada. Procurei a psicanálise porque me sentia mal comigo mesmo e queria muito me sentir bem. A pergunta seguinte era: o profissional teria o mesmo objetivo? Ele quereria me fazer sentir melhor com o instrumento terapêutico que usava?

Parece uma pergunta besta, não? Mas não é! Há vários psicanalistas que não se sentem comprometidos com a melhora e o bem-estar de seus pacientes (que dirá com a cura de seus sintomas), eles têm como meta “a reflexão sobre os enigmas do seu funcionamento psíquico”, ou pior, “com a sua aceitação da castração” (calma, que eu explico, é algo assim: “o mundo é duro mesmo, e você deve se dobrar e aceitá-lo como é, sem esperar colinho de mãe, que é o mesmo que querer roubá-la de seu pai, representante do mundo cruel. Tenha horror do incesto, o complexo de Édipo”).

De tal maneira que, escolher um psicanalista não é tarefa fácil. Aqui vão algumas sugestões que podem te ajudar, se você ainda não largou a leitura deste blasfemo insolente, ou mesmo desta pessoa desprezível pela sua linguagem chã que qualquer um pode compreender.

  1. A indicação. Ela pode vir de um amigo querido, que tem se sentido cada vez melhor com seu tratamento, e que te diz que nunca saiu de uma sessão pior do que entrou, e que não acredita que “hoje a sessão foi ótima, eu saí de rastos, aos prantos, me sentindo a última das criaturas, porque nós fomos fundo nos meus horrores”. Ela pode vir de artigos que você leu e te deram alívio e compreensão, assinados pelo cara. Ou o mesmo sentimento a partir de livros que ele escreveu, entrevistas que ele deu etc.

  2. O primeiro contato. Geralmente pelo telefone. É impressionante o que se pode aprender sobre o outro num telefonema: se ele é acolhedor; se é hostil; se é simpático ou não; se é pomposo ou simples; se você se sente confortável na conversa, ou constrangido; se vai te atender logo ou “talvez, se abrir uma vaga, nos próximos meses”. Enfim, minha sugestão é: só vá à entrevista se você se sentir bem com ele ao telefone. De desconforto, já basta a tua vida, você não precisa pagar (caro) por ele!

  3. Perplexidade. Se o Dr. Fulano te disser alguma coisa que você não entenda, se falar de tal maneira complicada que você chegue a achar que é burro, pode desistir: ele não serve para você.

  4. Mudez. Se o Dr. Fulano ficar olhando mudo para você quando você quiser saber algo na entrevista, as chances são de que ele ficará mudo durante a terapia. Por que você há de pagar (caro) para alguém que não diz nada? É teu trabalho se entender? Pois então fale para o espelho. É muito mais barato.

  5. Contrato. Sinta-se confortável com um contrato claro de tempos de sessão e de custos. Pergunte sobre férias suas e do terapeuta, quem paga o quê. Pergunte sobre pontualidades (há poucas coisas mais constrangedoras do que encarar colegas numa sala de espera), porque você tem mais o que fazer na vida, e continua sendo uma falta de respeito – em qualquer especialidade médica – te fazer esperar tendo hora marcada. Woody Allen diz em um filme que não podia se suicidar porque seu analista cobraria as sessões que ele faltasse. Contratos precisam ser claros!

  6. Como eu saio da sessão? Não deixe ninguém te convencer que sair de rastos, aos prantos e arrasado de uma sessão significa que ela foi “funda e produtiva”. Só significa que o terapeuta pôs mais dor naquilo de que você já se acusava. Ele quer que você se arrependa. É mais barato procurar a igreja católica (nos confessionários).

  7. Senso de humor. Se você sentir falta dele no seu terapeuta, significa que ele gosta de drama, e o drama é parte integrante, agravante e fundamental dos seus sintomas. Vá embora! Parte da cura é não se levar tão a sério, não se achar (e a ninguém) tão importante.

Dentro de cem anos, lembre-se, estaremos todos mortos (provavelmente, esquecidos). E, faz parte do meu imaginário aparelho humildificador, amanhã este artigo será papel de embrulhar peixe…


Diversos: Encanto e delicadeza

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Contracapa do CD do violonista Willians Pereira

Música é o que de mais próximo conheci (entendi, percebi, senti) do conceito de místico, que, de resto, me escapa. Escrever sobre música é um ato estranho, lembra-me o que um amigo disse ao ler uma vasta explicação sobre um quadro: “Arte não precisa de bula”. Certamente a música que faz minha mente fluir solta, deixando-se levar ao sopro dos acordes, como aquela peninha da abertura do “Forrest Gump”, não é uma das marchas militares do John P. DeSouza. Mas “encanto e delicadeza” são componentes que reconheço como tradução dessa mística. Reencontrá-los em peças que já me haviam encantado, como no Chopin e no Puccini do disco, só que na fala mansa do violão de Willians, foi um alumbramento. Ele nos dá tempo de saborear timbres, escandir acordes com seu instrumento, como se fossemos co-autores, surpreender-nos com soluções harmônicas inesperadas. É. O disco produziu encanto com sua delicadeza. O que mais posso pedir da música? Sim, porque Willians deixou a música vir antes do instrumentista. O que mais posso pedir dele?