10 abr 2012
A felicidade virou uma obsessão
O psicanalista Francisco Daudt da Veiga afirma que estamos confundindo o sagrado direito de querer ser feliz com uma busca frenética pelo prazer imediato. E defende a amizade como a única coisa capaz de sustentar um casamento por décadas
Por Carol Vaisman, Fotos Marcelo Correa
É óbvio, é óbvio utulante: todos os homens, sem exceção, procuram ser felizes. Nada é mais justo, nada é mais certo – mas talvez nada seja também tão acidentado quando essa busca permanente. Mas a peleja é ainda mais dramática nestes tempos de vícios em grandes emoções. “Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, que está sendo confundido com felicidade”, afirma o médico e psicanalista carioca Francisco Daudt da Veiga. Com 35 anos de experiência em consultório, ele passa os dias imersos nos sintomas dessa ansiedade geral que impacta especialmente as relações amorosas e a vida em família. Na entrevista que se segue, o autor de livros como O Amor Companheiro (Sextante) e Onde Foi Que Eu Acertei (Casa da Palavra) fala desse mar batido que cerca os casais, a busca pelas terapias de casal, a predisposição à separação (para encontrar a tal felicidade) e a tendência de idealizar o outro. E defende que a amizade é a única coisa capaz de manter um relacionamento feliz por décadas. “Ela é o verdadeiro porto seguro da nossa emoção”, diz, contrapondo-a à paixão – uma espécie de “loucura temporária”.
LOLA: Por que as pessoas estão precisando tanto de ajuda para lidar com o casamento?
FRANCISCO DAUDT DA VEIGA: As terapias de casal são, na maior parte, UTIs para casos terminais, quando o melhor que se pode fazer é ajudar para que a separação não seja tão doente. Às vezes, elas ajudam efetivamente aqueles que têm dificuldade de comunicação, o terapeuta serve de intérprete e diplomata entre as partes. Ao mesmo tempo, pode-se pensar que a maior busca de ajuda tem a ver com sua contrapartida: a facilidade com a ideia de separação faria aumentar a busca de alternativas. A obsessão pela felicidade, fenômeno social recente, atua nas duas pontas – separação e terapia.
O medo de sofrer virou uma epidemia?
O que existe é essa obsessão pela felicidade, que dá um empurrão em uma das características da natureza humana: a húbris (palavra de origem grega que significa o excesso, a intensidade, o exagero, a desmesura, a euforia), que sempre nos levou a rir, chorar, sofrer, a nos drogar como nenhuma outra espécie o faz. Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, confundido com felicidade.
É como se diz por aí: gastamos um dinheiro que não temos, consumindo coisas de que não precisamos, para impressionar pessoas que não conhecemos.
Não há relação humana imune ao acidental. Mas o amor companheiro dá mais segurança.
As pessoas hoje acham que tudo precisa ser discutido, precisa ser levado ao divã?
Há quem pense isso. Já me vi envolvido numa discussão em que a pessoa defendia análise para a humanidade inteira, e eu na posição oposta, mostrando o perigo de autoritarismo e homogeneização cultural que tal ideia contém. Quando recebo um paciente, recebo um passaporte de limites precisos: só é da minha conta o que for sintoma. Se o paciente aprecia exercicios fisicos (sem vício nem obsessão), apesar de eu ter horror a eles, decididamente não é da minha conta.
Os relacionamentos amorosos ainda são muito idealizados?
Sim, principalmente quando há paixão. A paixão é um estado de loucura transitória em que a pessoa não se relaciona com a outra, mas com a idealização que faz da outra. Por isso, sugiro sempre que os casais só tenham filhos – essa sociedade eterna – quando a paixão passar, e possam avaliar o amor que têm (ou não) em bases mais realistas.
A amizade é sempre a receita para um casamento feliz?
Se amizade quer dizer querer o bem do outro, achá-lo interessante, ter afinidades, curiosidade sobre ele, e haver reciprocidade desses sentimentos, a probabilidade de aumentar a vontade de estar juntos é grande – e isso proporciona um casamento feliz. Para os gregos clássicos, a amizade é uma das três formas de amor (filia: amizade; ágape: camaradagem; eros: atração sexual). Ela combina intensidade e capacidade de crescimento, pode incentivar Eros, fruto do carinho e da intimidade, mas não no registro da paixão, onde o bicho pega.
Você diz que, se o amor companheiro acontece por acidente, ele corre o risco de ser acidentado. Por quê?
Afora anúncios em sites de relacionamento (“procuro amigo que se interesse por música clássica e coleção de selos” etc.), que são de baixa eficácia, a descoberta de afinidades e de atração por outras pessoas é mesmo acidental. Quanto ao fato de o amor companheiro ser acidentado, não há relação humana imune a esse risco. E ele é das mais seguras.
Mas excesso de companheirismo não pode minar a vida de um casal?
O companheirismo é uma bênção na vida de um casal. O apoio mútuo, a cumplicidade, o achar graga um no outro, ter o que conversar são coisas que só enriquecem e fazem aumentar o amor. Talvez o que você chame de excesso de companheirismo seja a tendência de certos casais perderem suas individualidades e querer partilhar tudo o que vivem, “naquela base do só vou se você for”, inclusive a senha do computador. De largarem mão do direito de ter vida própria e confundirem amor com o “de hoje em diante sereis um só corpo e uma só alma”, que até hoje alguns padres dizem. Isso, sim, é um desastre que leva ao ódio reprimido, ao sadomasoquismo e/ou à separação.
O número de pessoas que moram sozinhas está cada vez maior por aí. Em Paris, mais da metade dos lares é formada por pessoas solteiras. Em Estocolmo, o indice é de 60%. O afeto é bem resolvido para essas pessoas?
Isso envolve o cultivo do indivíduo, percebendo-se com ideias próprias, gostos próprios e vontade de respeitar suas idiossincrasias. Comemos o risco de individualismo narcisista? Sem dúvida. Na outra extremidade está o coletivismo soviético, onde o conceito de indivíduo era algo a ser exterminado em favor da comunidade e do Partido, a ponto de dizerem que “o comunismo venceu a morte”, pois a pessoa não passa de uma célula do grande corpo da sociedade ideal, que continuará vivendo, mesmo que a célula se perca”. Deu no que deu. Mas também não há muito sentido em as pessoas morarem juntas se não têm nem querem ter filhos – gerenciar uma família é um ótimo motivo para viver junto.
Como a ansiedade dos pais interfere na criação dos filhos?
A ânsia de ver os fiIhos felizes pode levar ao wagging the dog (“sacudir o cachorro pelo rabo”: um cão sacode o rabo quando está alegre, mas o contrário não funciona: se você sacudir o rabo do cachorro, ele não fica alegre). “Ah, meu filho vai ser muito preparado: botei ele no inglês, no judô, na ginástica olímpica, na natação, no piano, na aula de artesanato e no futebol.” É, encheu a agenda do filho a ponto de ele não ter tempo para brincar, nem sozinho. Se você quer seu filho saudável, contemple-o, aprenda a lê-lo, a compreender a pessoa que ele é, suas necessidades, que devem ser acolhidas, e suas capacidades e ambições, que devem ser apoiadas.
Quais são os perigos de se antecipar as vontades dos filhos?
Eu tive uma infância mais pobre, ficava invejando o brinquedo dos outros. Meus filhos não vão passar por isso”, e com essa ideia saem os pais comprando para os fiIhos aquilo que eles, pais, gostariam de ter tido, e contribuindo para um desastre, que é uma geração apática, sem vontades, sem projetos, sem ambições e mimada. É um ponto em que, nos Estados Unidos, o termo spoiled (estragado, mimado) está sendo substituído por entitled (que se sente no direito de… tudo, com arrogância). São jovens com a intuição de que as coisas caem do céu, sem esforço nem espera.
E qual é o papel da paternidade hoje?
Os homens colhem hoje um benefício precioso, que é fruto do feminismo: a paternidade participativa.
Quando eu era menino, nos anos 50, meu pai era daqueles que chegavam do trabalho para jantar e corrigiam nossos modos à mesa. Pouco mais que isso. Era um provedor ótimo, mas que não deu moleza em matéria de dinheiro – o que foi um grande estímulo para a busca de nossa independência financeira. Eu, por minha vez, já tive a oportunidade de me envolver mais ativamente na criação de meus filhos, participar de suas conquistas e consolar seus dissabores, sem nunca perder a autoridade (a principal ferramenta na criação dos fllhos), mantendo a austeridade (uma atenuação da mão fechada do meu pai), cultivando o espírito, valores éticos, senso de humor, leveza no trato de qualquer assunto, mas nunca a leviandade. Ou seja, um pai de hoje pode ser pai de um jeito muito mais ativo.
E o papel da maternidade foi afetado?
Por certo. Mães que trabalham fora aprendem que o cuidado dos filhos pode ser partilhado com várias pessoas que gostam deles. Marido, creche, parentes, babás (demita aquelas que querem desenvolver dependência nas crianças, fazendo tudo por e com elas). Já é mais raro encontrar crianças que “estranham” se não estão no colo da mãe ou agarradas à sua saia. Meu principal medo é que essa mãe se sinta culpada por não dar aos fiIhos dedicação integral e queira compensá-los pelo excesso. A culpa é o principal corrompedor da tão necessária autoridade.
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