terça-feira, 24 de novembro de 2020

Diversos: Encanto e delicadeza

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Contracapa do CD do violonista Willians Pereira

Música é o que de mais próximo conheci (entendi, percebi, senti) do conceito de místico, que, de resto, me escapa. Escrever sobre música é um ato estranho, lembra-me o que um amigo disse ao ler uma vasta explicação sobre um quadro: “Arte não precisa de bula”. Certamente a música que faz minha mente fluir solta, deixando-se levar ao sopro dos acordes, como aquela peninha da abertura do “Forrest Gump”, não é uma das marchas militares do John P. DeSouza. Mas “encanto e delicadeza” são componentes que reconheço como tradução dessa mística. Reencontrá-los em peças que já me haviam encantado, como no Chopin e no Puccini do disco, só que na fala mansa do violão de Willians, foi um alumbramento. Ele nos dá tempo de saborear timbres, escandir acordes com seu instrumento, como se fossemos co-autores, surpreender-nos com soluções harmônicas inesperadas. É. O disco produziu encanto com sua delicadeza. O que mais posso pedir da música? Sim, porque Willians deixou a música vir antes do instrumentista. O que mais posso pedir dele?


Artigos: Estamos perdendo a guerra!

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo publicado N’O Globo

Odeio ter que brigar. Odeio sentir raiva. Não tenho vocação para qualquer espécie de militância política. Quem me conhece ou leu meus livros sabe que gosto do amor companheiro, da amizade, da beleza, de cultivar o espírito, enfim, de viver em paz. Mas há ocasiões em que me lembro de uma anedota que meu pai costumava contar. Dois grãos de milho conversam no chão de um galinheiro, e um deles comenta com o outro, ao ver a galinha engolir um terceiro, a sorte que tiveram porque não foi com eles, sem se darem conta de que serão os próximos. 

Pois foi esse pai, hoje com 99 anos, e minha mãe, de 90, que ficaram sob a mira de revólveres por duas horas dentro do quarto deles, reféns de cinco assaltantes que levaram o que ainda restava do último assalto (faz quatro meses) e mais o carro, que depois foi recuperado numa favela próxima. Dois assaltos em quatro meses, isso depois de viver na mesma casa  50 anos de tranqüilidade.

É então este indivíduo-milho que aqui escreve cheio de raiva e angústia por ter visto seus pais-milhos serem engolidos por uma das várias galinhas gulosas que vêm infestando nossa cidade. Cidade? País, queria dizer. Talvez um leitor-milho possa pensar um pensamento-milho típico: “Antes eles do que eu! E mesmo ele só está reclamando porque foi atingido de perto”. Quem sabe ele possa ter o mesmo desplante do Sr. Marcelo Itagiba, subsecretário de segurança(?), que declarou ser esse assalto “um episódio esporádico”. Ao ouvir isso, fui por minha vez “assaltado” por duas dúvidas: o Sr. Itagiba usa o mesmo Aurélio que eu? E mora ele no mesmo Rio de Janeiro que eu?

A raiva traz pensamentos sanguinários, mas para minha surpresa descobri que eles não se dirigiam aos pés-de-chinelo que renderam meus pais, e sim às autoridades que, em nome do Estado, deveriam estar zelando por nossa segurança. Aqui cabe um dado histórico que aprendi no livro “Armas, germes e aço”, de Andrew Diamond. Na savana africana, na época em que éramos caçadores-coletores, há milhares de anos, se um homem encontrava um desconhecido, seguia-se uma luta de morte imediatamente: o desconhecido era sempre o inimigo. Depois da domesticação de plantas e animais, a agropecuária, houve comida excedente, não foi mais necessário se deslocar sem parar, as famílias aumentaram e se estabeleceram em cidades. Ora, para que não houvesse a necessidade constante de uns ficarem matando os outros, surgiram leis de convivência, e um poder central que zelava pelo cumprimento dessas leis. Diamond chamou essa organização de governo de “cleptocracia” (o poder-ladrão, em grego), pois os governantes roubavam do povo, sob a forma de impostos, mas prometiam em troca manter as leis de convivência. A violência passava a ser monopólio do Estado, ninguém podia mais tomar as leis nas próprias mãos.

Os habitantes das cidades acharam isso muito confortável, pois que não tinham que passar o dia se defendendo e matando cada vez que um desconhecido passava por perto. Na verdade podiam se dedicar a coisas mais interessantes, e foi assim que surgiram as invenções para o bem-estar, e não para a guerra. Foi assim que surgiu a filosofia. Não se importavam muito com o roubo dos governantes, chamados impostos (ainda que esteja por nascer aquele que goste de impostos) desde que eles cumprissem seu principal papel: zelar pela lei e pela ordem. Se os cidadãos começassem a achar que os governantes os estavam roubando demais e protegendo-os de menos, a revolta era certa… e sanguinária.

Você já está sentindo em que direção meu argumento caminha, não é? Mas no meu coração não existe só raiva sanguinária. Ela conversa, e muito, com meus sentimentos democráticos. Tenho um apreço imenso pela democracia, até hoje a menos pior das cleptocracias, pois que contempla e defende os direitos do indivíduo, e melhor: não o considera inferior aos governantes! Seu poder deve emanar do povo, e em seu nome ser exercido. Qualquer tirania (hoje chamada ditadura) me enoja, seja ela exercida em nome de quem for, mesmo dos despossuídos, quando se chama ditadura do proletariado, pois tal concentração de poder sempre corrompe, sempre acaba se tornando um pretexto para a camarilha dirigente se locupletar, levando a cleptocracia ao paroxismo. A democracia, pelo contrário, é, mais que o direito, o dever de desconfiar dos governantes. Não é à toa que ela se exerce em três poderes distintos, um vigiando a aspiração tirânica do outro.

É, portanto, com meu pensamento democrático, que constato uma perversão grave e crescente no nosso Estado, e em nosso país: uma fração da população está tirando dos supostos zeladores da lei o monopólio da violência, quer seja subsidiada pelo dinheiro do tráfico, quer seja pela ganância de poder travestida em luta social pela terra. Formam governos paralelos onde vigem suas próprias regras, estranhas às instituídas pela democracia. Como resultado, nós, cidadãos que gostaríamos de viver em paz, produzindo riquezas ou fazendo filosofia, vivemos em medo, não sentimos mais a proteção dos cleptocratas (que aliás andam com um apetite tributário que vou te contar…). A isto se dá o nome de guerra civil. E nós a estamos perdendo! Seja por leniência, complacência, cumplicidade, incapacidade, despreparo ou corrupção, nossos governantes estão perdendo a guerra. Mas eles não morrerão nela. Guerra não mata generais, mata a infantaria (que significa “os infantes”, as crianças) que fica entre o mar e o rochedo, ou seja, nós, cidadãos-milhos, pequenos, impotentes e desarmados… tal como meus pais.

Um antigo primeiro-ministro inglês dizia que o homem honesto precisa ser tão ousado quanto o marginal para defender sua vida digna. Que ousadia democrática está ao nosso alcance, além do voto, para pressionar nossos governantes a se empenhar de verdade a ganhar essa guerra? E-mails em massa para a imprensa ainda livre, e para acordar o governo? Panelaços, como aquele glorioso que apoiou as “diretas, já!”? Passeatas (mas não, nunca, passeatas “pela paz”, que devem causar acessos de riso nos traficantes)? Não sei, já disse, não tenho vocação para militante. Sei que o governo democrático instituído não pode perder essa guerra. Para que o grito de vitória tão simbólico, e nada esporádico, viu, Sr. Itagiba, de “Perdeu, perdeu!” proferido pelos assaltantes não se torne o lamento de toda uma civilização: “Perdemos… perdemos.”


Artigos: HOMOFOBIA: Por Quê?

 (Publicado em 11 de junho de 2012)

Artigo para a Revista G Magazine

Homofobia [De hom(o)- + -fobia.]:

S. f.  Aversão a homossexuais ou ao homossexualismo.

É um fenômeno universal e multicultural demais para ser desprezado como “preconceito que o tempo muda”. Não. Merece um olhar cuidadoso, e, já vou avisando, você vai ler aqui reflexões sobre o tema, e não a resposta, muito menos a solução dessa coisa misteriosa.

Você pensa que na Grécia clássica não havia homofobia? Pois a única forma de homoerotismo bem acolhida na época era o amor apaixonado e erótico de um homem mais velho por um rapazinho pré-adolescente, quando ele se tornava seu protetor e conselheiro, um segundo pai. Fosse um senhor de escravo adulto querer fazer sexo oral naquele que era sua propriedade e isso caísse no conhecimento do povo, ele seria visto com aversão. Tribos indígenas americanas acolhiam bem o homem-mulher, que como elas se vestia e comportava, desejando um homem viril como parceiro. Um fenômeno que Hugo Denizart detectou como atual em seu livro “Engenharia Erótica”: nas classes pobres a bicha-louca exuberante foi desaparecendo, dando lugar ao homem-mulher atual (o travesti), que em vez de vaias recebe cantadas na rua, dinheiro na prostituição, e é perfeitamente aceita como parceira fixa nas prisões (chamada “mulher de cadeia”, como Dráuzio Varella conta em “Estação Carandiru”).

O resumo disso é que o homossexual masculino (que o capítulo lésbicas é outra história bem diferente) tem sido aceito ao longo dos tempos “desde que esteja bem localizado dentro de um nicho social, uma aparência e uma visibilidade que não incomode os héteros”. Saiu dali, ele desencadeia curto-circuitos cerebrais (aversões) que se dão no coletivo, sim, mas também no mais íntimo do pensamento do indivíduo hétero, e disso sou testemunha de consultório. Exemplo: André Gonçalves fez um personagem de novela que mantinha um romance com um amigo, sem que o personagem tivesse qualquer estereotipo, quer de bicha, quer de pitboy. Era um cara “normalzinho”, que podia ser amigão de um hétero. Resultado: o ator foi perseguido e maltratado na rua. Seguem-se alguns componentes reconhecíveis na construção da homofobia:

  1. Desprezo pelas mulheres:

As primeiras (e mais primitivas) manifestações de homofobia se dão na infância, e não têm nada a ver com erotismo. Pelo fato de que uma boa percentagem de futuros homossexuais nasce com jeito de mulher, desde os três-quatro anos preferirão brincar de boneca, de casinha, não serão musculares e desdenharão dos esportes, dos brinquedos de guerra, do futebol etc. , desse conjunto que não existe por imposição cultural, e sim por conformação biológica. É raro o homo que teve tiazinhas cercando-o de babados e dando-lhe bonecas na infância. Muito mais comum foi ter um pai furioso, impondo-lhe lutas marciais, chuteiras e bolas de futebol. Pois esses não serão discriminados como viadinhos. Os colegas de escola vão chamá-los de mulherzinha; mariquinha. Vão identificá-los como um ser desprezível: a menina. Nessa época as meninas nem ao menos são objeto de desejo. Mais tarde, quando o forem, elas serão fáceis (e desprezadas por isso) ou difíceis (e causadoras de rancor por isso). Como pode entrar na cabeça de um menino hétero que seu semelhante queira ser, ou parecer, um traste tal?

2.  Aversão aos estrangeiros:

Não nos damos conta que conviver com estranhos sem partir para matá-los é um fato muito novo na espécie humana. Surgiu há cerca de 12.000 anos com a criação da cidade-estado. Antes disso, o ancestral caçador-coletor  partia para a luta mortal se o outro fosse reconhecido como estranho a sua tribo. Vamos tomar nossos primitivos mais próximos (as crianças). Quando saem de sua tribo (a casa) e entram num ambiente hostil (o colégio) elas se defendem passando um contínuo radar que pesca qualquer desvio do homogêneo, do familiar: esses são os inimigos. É por isso que não existe ninguém tão intolerante com as diferenças que as crianças. Os apelidos são característicos: “Gaguinho”; “Quatro-olho”; “Deixa-que-eu-chuto”;  “Ferrugem”; “Pelé”; “Tição”, e por aí vai… Os mariquinhas não haveriam de ficar de fora.

3. Medo de contágio:

Existe uma mitologia gay de que no fundo todos os héteros são enrustidos. Ela é errada, mas não deixa de ter algum parentesco com a verdade. Quando Kinsey publicou seu famoso relatório dos anos 40 mostrando que a experiência homossexual masculina (ainda que única) era muito mais comum do que se supunha, principalmente na infância e na adolescência, ele causou uma comoção equivalente a revelar o segredo mais íntimo de alguém. Sua classificação dos homens quanto à capacidade de desejo homossexual continua comprovável e útil. Ele os dividiu nos tipos de 1 a 6. O tipo 1 é o hétero em quem nem passa pela cabeça o mais vago interesse erótico por outro homem. Não quer dizer que o tipo 1 não possa ter prazer com outro homem. Muitos deles tiveram iniciação sexual com amiguinhos (por falta de outra oportunidade) e não ficaram traumatizados, não precisaram reprimir tal lembrança, são capazes de achar graça nisso. Por isso mesmo, tendem a ser os mais indiferentes/tolerantes à questão homossexual: ela não chega a ser um assunto.

O problema, quanto à homofobia, está nos tipos 2 e 3, que têm crescente capacidade de desejo homo, mesmo sendo héteros (definido por tesão visual maior por mulheres). Esses, se têm lembranças infantis homo, delas se envergonham, precisaram reprimi-las. São os tais que necessitam “afirmar sua masculinidade”, pois que, para eles mesmos, ela pode ser posta em dúvida. Cá e lá se assustam (e se afastam) com o amor que desenvolvem por seus amigos, ou com a atração que determinados homens lhes despertam. Esses sim, têm medo de “virar viado”. É um medo sem fundamento. Sua preferência visual permanecerá a mesma pela vida afora. Poderiam, teoricamente, fazer um acordo com eles mesmos, “é, eu de vez em quando vou ter tesão em homem, mas isso não me arranca pedaço”. Sinto muito, isso é teórico. Eles investiram tanto na repressão, demonizando seus poucos desejos homoeróticos, reforçando uma postura defensiva de supermachos, que passaram a ter medo, fobia, do contágio. Agem como os antigos agiam com os leprosos, apedrejando-os por pavor, mas o contágio que temem é o do desejo.

O tipo 6 é o homo em quem nem passa pela cabeça o mais vago interesse hétero. Esse é o que “sai do armário” mais facilmente, não é tanto uma questão de coragem e sim de total falta de opção. Os tipos 5 e 4 são os que têm crescente capacidade de desejo hétero, mas são e serão sempre homossexuais (pela preferência visual). Esses muitas vezes, já que podem, se casam, constituem família, e infelizmente podem engrossar o problema da homofobia por não aceitarem sua condição, tentarem reprimi-la e ficarem assim parecidos com os tipos 2 e 3 acima. É curioso, mas quando os tipos 5 e 4 se assumem gays, podem exercer uma patrulha “heterofóbica” sobre seus pares, criticando-os por transarem com mulheres, desprezando-as, chamando-as de “rachas”, pois também andaram reprimindo seus desejos héteros.

Faz parte do miolo (de 2 a 5) o michê que confessou para a polícia: “A bicha não quis me pagar porque disse que eu também gostei, aí eu matei ele, que nenhuma bicha vai me chamar de viado, eu faço isso por dinheiro”. Infelizmente, é um caso bem comum.

 4. O inimigo que nos une:

Quando dentro de grupos, turmas ou mesmo povos, surge uma liderança tirânica que quer impor suas idéias ou vontades calando qualquer discussão, é comum que o déspota se valha de um inimigo, uma espécie de bode expiatório para seus males, contra quem todos devem estar unidos, e a favor de quem ninguém pode ser, sob pena de ser suspeito dos mesmos “crimes” do bode. Tem sido assim: desde o colégio e suas tribos; skinheads; pitboys; os nazistas com os judeus (e os homossexuais, de quebra); o Bush com os terroristas; Stalin com todo mundo que não se submetia a ele; a esquerda brasileira com a ditadura; a ditadura com os comunistas. Por aí vai.

Talvez o fato histórico mais grave nessa série: Moisés, ao impor Iavé como deus único, perseguiu os devotos de sub-deuses cujos cultos tinham orgias homoeróticas, inaugurando a homofobia da cultura judáico-cristã, que vemos até hoje nos pronunciamentos do papa católico.

Essa forma de homofobia (eleger o homossexual como o inimigo que une) é a mais grave de todas, mas é a que traz a maior lição: a prática homofóbica está ligada à tirania, ao excesso de poder (de grupos ou estados fortes), e seu melhor remédio está no aprendizado da democracia e no aprimoramento de suas leis anti-discriminação, no costume de parlamentar e conviver com as idéias (ou jeitos de ser) diferentes.

Francisco Daudt da Veiga é psicanalista carioca, e autor, dentre outros livros, de “O amor companheiro – a amizade dentro e fora do casamento” (Sextante).


Artigos: Acidente Aéreo

 (Publicado em 11 de maio de 2012)

Sobre o “acidente” em Congonhas, gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete de jornal que estampasse, em letras garrafais, “GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS”. O assassino não é apenas aquele que enfia a faca, mas também o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser chamado de acidente, vamos dar o nome certo: crime. Quanto mais meios de impedir o crime tem o cúmplice, mais assassino é. Remeto-me ao livro de Garcia Marques, “Crônica de uma morte anunciada”. Todos sabiam e ninguém fez nada. E não me refiro a você, leitor, que se consome em sua impotência diante deste e de tantos descalabros que vimos assistindo semanalmente, ao ponto do fastio. Ao ponto de a ministra se permitir ao deboche extremo do “relaxa e goza”? Será esta sua recomendação aos parentes das novas vítimas? Refiro-me às autoridades (in)competentes, inapetentes de trabalho gestor, ávidas pelos brilharecos do poder. Refiro-me ao presidente Lula, que, há quantos meses, ó Senhor, disse em uma de suas basófias inconseqüentes que queria “data e hora para o apagão aéreo acabar”, como se ele não dispusesse da devida autoridade para tal, como se não tivesse nada a ver com isso, como se, mais uma vez, não soubesse de nada.

Sinto pena de não ter estado na abertura do Pan, de não ter engrossado aquelas bem merecidas vaias. Talvez o presidente não se importe tanto, afinal, quem viaja de avião não é beneficiário de sua bolsa-esmola, não faz parte do seu particular curral eleitoral cevado com o dinheiro que ele arranca de nós, crescentemente. Devem fazer parte das tais “elites”, que é como ele escarnece da classe média que faz (apesar do governo) o Brasil crescer. Qual de nós escapou do medo de voar desde o desastre da Gol HÁ NOVE MESES? Qual de nós escapou da sensação de que tudo era uma questão de tempo para que nova tragédia se repetisse? Qual de nós assistiu confortável o jogo de empurra, “a culpa é dos controladores”; “não, é do ministério da defesa”; “a mídia também exagera tudo”; “é do lobby das empreiteiras que só querem fazer obras inúteis e superfaturadas nos aeroportos”.

Qual de nós deixou de ficar perplexo com a falta de ação efetiva para que o problema se resolvesse? Perdão, acho que a tal falta de ação geral de governo é de tamanho tão extenso e dura tanto tempo que muitos de nós a ela nos acostumamos.

Sou psicanalista, e, por dever de ofício, devo escutar cuidadoso qualquer coisa que meus clientes queiram dizer. Pois nunca pensei que fosse pronunciar no consultório uma frase que venho repetindo há algum tempo, depois de que mensalões, valeriodutos, Land-Rovers, dólares na cueca, dossiês fajutos, renans calheiros, criminalidade, insegurança pública, impunidade, pizzas e tudo isso que o leitor já sabe se despejam fétida, diária e gosmentamente sobre nossas cabeças. A tal frase: “Não quero falar desse assunto”. Os pacientes me respondem com alívio, “Ufa, eu também não!”

É o desabafo da impotência partilhada. É uma atitude semelhante à dos moradores da Bósnia, cuja única forma de resistência que encontravam era tocar suas vidas. “Welcome to Congo”? Talvez seja um insulto ao Congo.

Pois agora quero falar deste assunto. Deram-me a oportunidade de ser menos impotente, nessas folhas que o leitor ora contempla. Sei que falo por uma enorme quantidade de brasileiros trabalhadores que sustentam essa enorme máquina de (des)governo, muitos mais que os 90 mil do Maracanã, para expressar o nojo e a raiva que esse acúmulo de barbaridades nos provoca.

O assassinato em massa terá sido a gota d’água? O governo sairá da inação, da omissão criminosa? Alguém será preso, punido por todas essas coisas? Infelizmente, duvido. Ou quem sabe me prendam por delito de opinião? Por ter deixado o coração explodir? Irei para a cadeia alegremente, lembrando Graciliano Ramos, que, visitado no cárcere por um amigo, travou com ele o seguinte diálogo:

— Puxa, Graça, você, aí dentro, de novo?

— E você, o que está fazendo aí fora? Nestes tempos que correm, lugar de homem honesto é na cadeia.

Partilhar

3

Material publicado na Folha de São Paulo.


Entrevistas: Revista Lola (março 2012)

 (Publicado em 10 de abril de 2012)

10 abr 2012

A felicidade virou uma obsessão

O psicanalista Francisco Daudt da Veiga afirma que estamos confundindo o sagrado direito de querer ser feliz com uma busca frenética pelo prazer imediato. E defende a amizade como a única coisa capaz de sustentar um casamento por décadas

Por Carol Vaisman, Fotos Marcelo Correa

É óbvio, é óbvio utulante: todos os homens, sem exceção, procuram ser felizes. Nada é mais justo, nada é mais certo – mas talvez nada seja também tão acidentado quando essa busca permanente. Mas a peleja é ainda mais dramática nestes tempos de vícios em grandes emoções. “Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, que está sendo confundido com felicidade”, afirma o médico e psicanalista carioca Francisco Daudt da Veiga. Com 35 anos de experiência em consultório, ele passa os dias imersos nos sintomas dessa ansiedade geral que impacta especialmente as relações amorosas e a vida em família. Na entrevista que se segue, o autor de livros como O Amor Companheiro (Sextante) e Onde Foi Que Eu Acertei (Casa da Palavra) fala desse mar batido que cerca os casais, a busca pelas terapias de casal, a predisposição à separação (para encontrar a tal felicidade) e a tendência de idealizar o outro. E defende que a amizade é a única coisa capaz de manter um relacionamento feliz por décadas. “Ela é o verdadeiro porto seguro da nossa emoção”, diz, contrapondo-a à paixão – uma espécie de “loucura temporária”.

LOLA: Por que as pessoas estão precisando tanto de ajuda para lidar com o casamento?

FRANCISCO DAUDT DA VEIGA: As terapias de casal são, na maior parte, UTIs para casos terminais, quando o melhor que se pode fazer é ajudar para que a separação não seja tão doente. Às vezes, elas ajudam efetivamente aqueles que têm dificuldade de comunicação, o terapeuta serve de intérprete e diplomata entre as partes. Ao mesmo tempo, pode-se pensar que a maior busca de ajuda tem a ver com sua contrapartida: a facilidade com a ideia de separação faria aumentar a busca de alternativas. A obsessão pela felicidade, fenômeno social recente, atua nas duas pontas – separação e terapia.

O medo de sofrer virou uma epidemia?

O que existe é essa obsessão pela felicidade, que dá um empurrão em uma das características da natureza humana: a húbris (palavra de origem grega que significa o excesso, a intensidade, o exagero, a desmesura, a euforia), que sempre nos levou a rir, chorar, sofrer, a nos drogar como nenhuma outra espécie o faz. Vivemos uma época de busca frenética pelo prazer imediato, confundido com felicidade.

É como se diz por aí: gastamos um dinheiro que não temos, consumindo coisas de que não precisamos, para impressionar pessoas que não conhecemos.

Não há relação humana imune ao acidental. Mas o amor companheiro dá mais segurança.

As pessoas hoje acham que tudo precisa ser discutido, precisa ser levado ao divã?

Há quem pense isso. Já me vi envolvido numa discussão em que a pessoa defendia análise para a humanidade inteira, e eu na posição oposta, mostrando o perigo de autoritarismo e homogeneização cultural que tal ideia contém. Quando recebo um paciente, recebo um passaporte de limites precisos: só é da minha conta o que for sintoma. Se o paciente aprecia exercicios fisicos (sem vício nem obsessão), apesar de eu ter horror a eles, decididamente não é da minha conta.

Os relacionamentos amorosos ainda são muito idealizados?

Sim, principalmente quando há paixão. A paixão é um estado de loucura transitória em que a pessoa não se relaciona com a outra, mas com a idealização que faz da outra. Por isso, sugiro sempre que os casais só tenham filhos – essa sociedade eterna – quando a paixão passar, e possam avaliar o amor que têm (ou não) em bases mais realistas.

A amizade é sempre a receita para um casamento feliz?

Se amizade quer dizer querer o bem do outro, achá-lo interessante, ter afinidades, curiosidade sobre ele, e haver reciprocidade desses sentimentos, a probabilidade de aumentar a vontade de estar juntos é grande – e isso proporciona um casamento feliz. Para os gregos clássicos, a amizade é uma das três formas de amor (filia: amizade; ágape: camaradagem; eros: atração sexual). Ela combina intensidade e capacidade de crescimento, pode incentivar Eros, fruto do carinho e da intimidade, mas não no registro da paixão, onde o bicho pega.

Você diz que, se o amor companheiro acontece por acidente, ele corre o risco de ser acidentado. Por quê?

Afora anúncios em sites de relacionamento (“procuro amigo que se interesse por música clássica e coleção de selos” etc.), que são de baixa eficácia, a descoberta de afinidades e de atração por outras pessoas é mesmo acidental. Quanto ao fato de o amor companheiro ser acidentado, não há relação humana imune a esse risco. E ele é das mais seguras.

Mas excesso de companheirismo não pode minar a vida de um casal?

O companheirismo é uma bênção na vida de um casal. O apoio mútuo, a cumplicidade, o achar graga um no outro, ter o que conversar são coisas que só enriquecem e fazem aumentar o amor. Talvez o que você chame de excesso de companheirismo seja a tendência de certos casais perderem suas individualidades e querer partilhar tudo o que vivem, “naquela base do só vou se você for”, inclusive a senha do computador. De largarem mão do direito de ter vida própria e confundirem amor com o “de hoje em diante sereis um só corpo e uma só alma”, que até hoje alguns padres dizem. Isso, sim, é um desastre que leva ao ódio reprimido, ao sadomasoquismo e/ou à separação.

O número de pessoas que moram sozinhas está cada vez maior por aí. Em Paris, mais da metade dos lares é formada por pessoas solteiras. Em Estocolmo, o indice é de 60%. O afeto é bem resolvido para essas pessoas?

Isso envolve o cultivo do indivíduo, percebendo-se com ideias próprias, gostos próprios e vontade de respeitar suas idiossincrasias. Comemos o risco de individualismo narcisista? Sem dúvida. Na outra extremidade está o coletivismo soviético, onde o conceito de indivíduo era algo a ser exterminado em favor da comunidade e do Partido, a ponto de dizerem que “o comunismo venceu a morte”, pois a pessoa não passa de uma célula do grande corpo da sociedade ideal, que continuará vivendo, mesmo que a célula se perca”. Deu no que deu. Mas também não há muito sentido em as pessoas morarem juntas se não têm nem querem ter filhos – gerenciar uma família é um ótimo motivo para viver junto.

Como a ansiedade dos pais interfere na criação dos filhos?

A ânsia de ver os fiIhos felizes pode levar ao wagging the dog (“sacudir o cachorro pelo rabo”: um cão sacode o rabo quando está alegre, mas o contrário não funciona: se você sacudir o rabo do cachorro, ele não fica alegre). “Ah, meu filho vai ser muito preparado: botei ele no inglês, no judô, na ginástica olímpica, na natação, no piano, na aula de artesanato e no futebol.” É, encheu a agenda do filho a ponto de ele não ter tempo para brincar, nem sozinho. Se você quer seu filho saudável, contemple-o, aprenda a lê-lo, a compreender a pessoa que ele é, suas necessidades, que devem ser acolhidas, e suas capacidades e ambições, que devem ser apoiadas.

Quais são os perigos de se antecipar as vontades dos filhos?

Eu tive uma infância mais pobre, ficava invejando o brinquedo dos outros. Meus filhos não vão passar por isso”, e com essa ideia saem os pais comprando para os fiIhos aquilo que eles, pais, gostariam de ter tido, e contribuindo para um desastre, que é uma geração apática, sem vontades, sem projetos, sem ambições e mimada. É um ponto em que, nos Estados Unidos, o termo spoiled (estragado, mimado) está sendo substituído por entitled (que se sente no direito de… tudo, com arrogância). São jovens com a intuição de que as coisas caem do céu, sem esforço nem espera.

E qual é o papel da paternidade hoje?

Os homens colhem hoje um benefício precioso, que é fruto do feminismo: a paternidade participativa.

Quando eu era menino, nos anos 50, meu pai era daqueles que chegavam do trabalho para jantar e corrigiam nossos modos à mesa. Pouco mais que isso. Era um provedor ótimo, mas que não deu moleza em matéria de dinheiro – o que foi um grande estímulo para a busca de nossa independência financeira. Eu, por minha vez, já tive a oportunidade de me envolver mais ativamente na criação de meus filhos, participar de suas conquistas e consolar seus dissabores, sem nunca perder a autoridade (a principal ferramenta na criação dos fllhos), mantendo a austeridade (uma atenuação da mão fechada do meu pai), cultivando o espírito, valores éticos, senso de humor, leveza no trato de qualquer assunto, mas nunca a leviandade. Ou seja, um pai de hoje pode ser pai de um jeito muito mais ativo.

E o papel da maternidade foi afetado?

Por certo. Mães que trabalham fora aprendem que o cuidado dos filhos pode ser partilhado com várias pessoas que gostam deles. Marido, creche, parentes, babás (demita aquelas que querem desenvolver dependência nas crianças, fazendo tudo por e com elas). Já é mais raro encontrar crianças que “estranham” se não estão no colo da mãe ou agarradas à sua saia. Meu principal medo é que essa mãe se sinta culpada por não dar aos fiIhos dedicação integral e queira compensá-los pelo excesso. A culpa é o principal corrompedor da tão necessária autoridade.

Partilhar


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Consulta: Católica Discorda Do Papa

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Sou católica, mas as declarações do Papa Bento XVI têm me causado estranheza, ora por sua declaração de que a homossexualidade é pior que o aquecimento global, ora porque a máquina de lavar roupa fez mais pelas mulheres que a pílula, ou que a camisinha agrava o problema da AIDS, ou por cancelar a excomunhão do bispo que disse que não houve holocausto. Como ser católica e discordar do que diz o Papa?

Fui criado na fé católica e acompanhei seis papas até agora. É claro que não tenho competência para falar de religião, mesmo porque sou agnóstico (alguém que não tem bases sólidas para negar a existência de um deus). Mas, especialista em seres humanos, posso dizer que o atual papa não tem um décimo do carisma dos anteriores, com a agravante de suceder João Paulo II, que era um pop-star. O papa Ratzinger era o cardeal mais conhecido antes de sua eleição, e recebia uma grande quantidade de rancor por suas atuações anteriores. Quando eleito, apareceu como alguém fantasiado de papa. Ouvi de católicos a mesma estranheza que a Sra. me conta.

No entanto, ele é um gerente de sua corporação que zela por seus estatutos. É como um clube. Quem não quiser seguir as regras está fora. Como disse Sobral Pinto: “Não conheço democracia à brasileira, só conheço peru à brasileira, com farofa”. O papa Ratzinger, a despeito de sua falta de carisma, tem todo o direito de dizer quem é católico ou não.

Material publicado na Folha de São Paulo.

Consulta: Lembranças Constrangedoras

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Eu tenho ataques de lembranças que me deixam muito envergonhado. Às vezes eu tenho que gritar para espantar essas lembranças. O que é isto?

É um sintoma da neurose obsessiva, chamado “lembranças constrangedoras”. Ele é resultado de um desejo exibicionista, com a crítica interna de que ele não é apropriado. A palavra chave deste sintoma é o ridículo. O sentimento de ser ridículo se dá no momento em que a pretensão descabida se torna visível. Exemplo: suponha que você tenha a pretensão de saber falar inglês. Mas sua pretensão é descabida, pois seu inglês é precário. Em alguma situação você se vê obrigado a falar inglês frente a outras pessoas que o falam bem. Elas vão notar a distância entre o inglês que você anunciava falar e o inglês que você realmente fala.

Este é o momento do ridículo. Não é algo que seja engraçado, ou cômico. Não será algo de que as pessoas irão rir com você, mas que irão rir de você.

O desejo exibicionista não tem nada de errado. Todos nós queremos aparecer e sermos admirados. O ponto central é o descabimento. Se nós formos humildes o bastante para exibir o que realmente podemos produzir, jamais seremos ridículos. É interessante que o desejo exibicionista possa conviver com a avaliação humildificadora daquilo que podemos realmente apresentar como algo admirável.

Material publicado na Folha de São Paulo.