quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Consulta: Choro Fora de Lugar

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Morreu minha vizinha, uma senhora delicada com quem não tinha maiores intimidades, mas por quem tinha muita admiração. Fiquei tocado de uma maneira que não esperava, chorei, como não chorei por minha mãe. Que coisa é essa?

Para te dizer a verdade, não sei. Mas um psicanalista trabalha com símiles, experiências próprias que podem parecer com a de seus clientes. Pois aí vai a morte de D. Cordélia, minha vizinha, por quem sentia algo como você descreve. Escrevi na circular da vila onde moro:

“Pequeno e doce passarinho, que, quase cega, não nos percebia até um metro de distância, quando então se abria em um sorriso acolhedor, reconhecendo, não só a nós, mas que pessoas éramos. Eu lembrava do Chico Buarque em sua música: “Os poetas, como os cegos, sabem ver na escuridão”. Ela era esposa de um dos maiores lingüistas do nosso idioma, mas tinha brilho próprio. Modesta, sua inteligência era arguta. Suas maneiras gentis, suas observações extraordinárias pela sutileza, pontuavam o discurso do erudito marido com uma sensatez admirável. Era uma sombra, mas para quem lhe prestasse a atenção, era uma luz doce e radiante. Um ícone de delicadeza, uma daquelas pessoas que só chamam a atenção dos que estão desejosos da beleza que possa existir nos corações humanos. Espero que D. Cordélia seja parecida com sua vizinha, pois ela nos acrescentou o espírito.

Material publicado na Folha de São Paulo.



Consulta: Filho Rebelde

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Meu filho adolescente é rebelde e transgressor. Usa maconha e diz que eu sou uma reacionária, burguesa opressora dos pobres. Anda com más companhias, que ele chama de “sua tribo”. Estou com medo. Onde foi que eu errei?

Querida, não se culpe, onde os pais mais erram? Ao quererem formatar seus filhos naquilo que eles acham certo, ao invés de procurar as pessoas que eles são, desde pequenos. Ao invés de tentar lê-los e estimular o que eles têm de bom, sem criticá-los como deficientes, ou mal intencionados em seus erros.

Quando eles se tornam adolescentes e mais fortes, adotam “pais” (a tribo) completamente opostos a vocês. Não há ninguém mais manipulável que um adolescente rebelde. Acabei de ler um livro de uma pianista que viveu sob a revolução cultural chinesa (“O rio e seu segredo”, de Zhu Xiau –Mei). Ela, apesar de pianista brilhante, ainda aos 50 anos carrega a culpa de ter prejudicado seus amigos e parentes pela pressão “revolucionária” de delatá-los como burgueses na adolescência. Como resistir a tal pressão? Infelizmente, o totalitarismo pode começar em casa, e ser rapidamente transferido para a tribo. As tribos costumam ser totalitárias e exigem submissão. O totalitarismo precisa de demônios (os judeus no nazismo; os burgueses no comunismo; as “zelite” no populismo). Sinto te dizer, os demônios da hora são vocês, pais.

Material publicado na Folha de São Paulo.

Consulta: Zonas Erógenas Incomuns

 (publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Sou hétero, mas me sinto esquisito, pois descobri que não gosto de penetrar. Acho cansativo. Prefiro ficar horas nos carinhos (gosto mais de receber, mas também gosto de fazer). Além disso, meus mamilos e a pele externa do meu ânus são verdadeiros clitóris. Isso é anormalidade?

Não. Isso se chama singularidade. Primeiro, meus parabéns pela sorte que você tirou ao ter tantas zonas sensíveis. Um amigo politicamente incorreto me dizia, “Esse negócio de meter é pra operário. Brincar é muito melhor. Preliminares? Isso supõe que o jogo só começa na penetração? Ora, faça-me o favor!”

De fato, a mãe natureza quer que penetremos (essencial para a procriação), e o senso comum estabeleceu uma linha de montagem ditatorial sobre o sexo, sobretudo para os homens: desnudamentos; algum estímulo genital prévio à penetração; ereção obrigatória (a causa do sucesso dos Viagras); penetração com aeróbica prolongada para dar orgasmo à moça (que se sente obrigada a tal); cumprida a obrigação, ejacular. Os que sabem que estamos obedecendo essas ordens podem se rebelar contra elas e inventar, como você inventa. Não se trata de estabelecer um novo “certo”, mas de dar espaço à individualidade. Um diálogo de coxias me foi contado pela atriz, minha paciente:

Ele : Fulana, você gosta de pau mole?

Ela : Adoooro!

Ele : Então eu vou te levar à loucuura!   (Pano rápido)

Material publicado na Folha de São Paulo.

Consulta: Homens Fazem Sexo, e Mulheres, Amor?

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Li um livro, “Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor”, mas não cheguei a nenhuma conclusão.

É um livro interessante que mostra como a cabeça dos homens é diferente da cabeça das mulheres. Você não podia mesmo chegar a nenhuma conclusão, pois o título do livro em inglês é “Por que os homens não escutam e as mulheres não sabem ler mapas” (Pease & Pease), e seu título foi mudado provavelmente por razões comerciais.

E foi mudado sob premissas falsas. Premissa é a idéia de que se parte para formar um raciocínio. Se ela é falsa, o raciocínio será falso. Quando Newton se perguntou “Por que o diabo dessa maçã me caiu na cabeça?”, ele estava usando uma premissa verdadeira. As coisas soltas no ar caem no chão, é uma verdade que dispensa demonstrações. É evidente que mulheres também fazem sexo e homens também fazem amor. As diferenças citadas no livro derivam da psicologia evolucionista. Nossos ancestrais na savana da África sobreviviam da caça (homens) e da coleta de alimentos (mulheres), e isso marcou as diferenças de comportamento. Os homens de pouca conversa (para não espantar a caça) e as mulheres de muita conversa (troca de informações sobre onde coletar, e estabelecimento de alianças para obter ajuda com seus filhos). O senso de orientação dos caçadores precisa ser grande (ler mapas); a mulher que quiser discutir a relação durante o noticiário não será ouvida.

Material publicado na Folha de São Paulo.

Consulta: Ressaca da Felicidade

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Eu me separei há cinco meses para cuidar de mim, e da praga da depressão crônica de que sofro. Minha vida de solteiro, sem ter que ser um constante servidor involuntário de minha ex, vem melhorando. Tenho experimentado momentos de felicidade, até. Mas, depois deles, sofro uma recaída da depressão. Como se explica isso?

Você vem sofrendo uma espécie de ressaca de felicidade que Freud descreveu lindamente em seu artigo “Os que fracassam frente ao triunfo”. Lá, ele mostra que pessoas que deixaram para trás situações penosas com quem tinham relações afetivas sentem culpa de estarem bem.

O exemplo mais típico é o do judeu sobrevivente do campo de concentração, que, a cada vez que se sente bem, parece ouvir os mortos lhe dizendo: “Aí, hein, você nessa boa e nós aqui!” A culpa é tão grande que ele percebe que a única coisa digna que pode fazer é ser infeliz, como a dizer, “Sim, estou vivo, mas minha vida é uma desgraça, não há nada a invejar”. A culpa é a mais poderosa arma de submissão já inventada por nossa espécie. Ela é tão incomodativa que pode produzir infelicidades variadas para dela escapar. Inclusive doenças, acidentes, perda de dinheiro e suicídio. Outro caso típico é dos mais capazes que enriquecem saídos de condições humildes: “Esqueceu dos pobres, hein?” É arrasador. Possivelmente, é a pior resistência que enfrento no meu trabalho: Os que pioram por melhorar.

Material publicado na Folha de São Paulo.

Consulta: Responsável Por Quem Cativas?

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


O que o Sr. tem a dizer sobre a frase “tu és eternamente responsável por aquele a quem cativas”?

É uma pena que um livro tão bonito como “O pequeno príncipe” contenha tamanha batatada. O verbo “cativar” (na bela tradução de D. Marcos Barbosa do francês apprivoiser) guarda proximidade com “tornar cativo, prisioneiro”. Em termos de relações afetivas, é um duplo desastre a frase de S. Exupéry.

Seriam dois prisioneiros: o cativo e o cativante. Ou um equivalente à promessa ridícula das cerimônias de casamento, “até que a morte vos separe”. A união das pessoas se dá por um dia-a-dia que lhes desperta vontade, baseada no respeito e no acolhimento do indivíduo que é o outro. O que não exclui um comprometimento sério, sobretudo quando se associam para criar filhos. Estes sim, poderiam reclamar responsabilidade, não de quem os cativou, mas de quem os gerou, segundo o provérbio americano “dez segundos de prazer; trinta anos de preocupações”. Ser cativante, ou sedutor, é resultado de uma atração por alguém que ainda não se conhece. Se ao longo do tempo aquela pessoa mostra não se encaixar nos nossos desejos, ou tenta nos aprisionar pelo sentimento de culpa ou por ameaças, temos a liberdade de mudar de idéia, não porque um está errado e outro certo, mas porque as divergências fundamentais tornaram-se claras.

Material publicado na Folha de São Paulo.

Consulta: Dificuldades com Dinheiro

 (Publicado em 01 de fevereiro de 2012)


Sempre estou sem dinheiro, com dificuldade de ganhar dinheiro, enrolada com dinheiro. O que isso pode significar?

Você diz que tem mais de 50, o que a põe (para baixo, é claro) dentro da minha geração. Vou te contar o que tenho observado no quesito dinheiro-mulheres: elas, em sua grande maioria, se beneficiaram muitíssimo do movimento feminista (e nós homens também, pela descoberta da paternidade participativa), mas, se elas descobriram o valor do trabalho – e a ele se dedicam com afinco e devoção como se fossem parte de uma “família” – não foram criadas como nós homens o fomos (lembrando da nossa faixa de idade):

  1. você terá que ser provedor de uma família;
  2. trate de saber como se lida com dinheiro;
  3. saiba negociar salário (uma amiga, ao receber uma proposta aviltante do patrão, disse tudo o que um empresário quer ouvir: “Eu não preciso disso, tenho marido!”;
  4. se o salário não sobe, saiba a hora de trocar de emprego para ganhar mais, sem a menor pena;
  5. viva dentro do orçamento;
  6. faça poupança;
  7. JAMAIS pague  juros de cartão ou cheque especial, que não passam de agiotagem legalizada.

Vejo, com prazer, as mais novas gerações de mulheres aprendendo isso tudo, mas a nossa é um desastre. Há ainda o vício do consumismo compulsivo e outras perturbações  que
só agravam o destrambelhamento financeiro.

Material publicado na Folha de São Paulo.