quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Consulta: Político ou Psicanalítico?

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Seu artigo na Folha foi político e não psicanalítico, como o Sr. explica isto?

Porque psicanalítico é sempre político, e vice-versa, às vezes. A política é mal entendida. Não é só o que os políticos fazem. Seu sentido vem da Grécia clássica, a correlação de poderes entre governantes e governados. Portanto, quando você repreende seu filho, isso é política. Não acredite que psicanalistas são apolíticos, ou “neutros”, como alguns gostam de dizer. Seus silêncios e resmungos são políticos (no sentido clássico). Seria redundante dizer que um psicanalista também é um cidadão, mas talvez necessário, pois um dos meus opositores neste assunto resolveu questionar a minha ética, achando que eu não poderia falar o que falei por ser psicanalista. É uma outra confusão, quanto ao sentido de ética. A ética básica é não causar dano injustificado. Pôr um criminoso na cadeia, é, portanto, ético, ainda que lhe cause dano. Antiéticas, na medicina (porque sou médico), são a imperícia, a imprudência e a negligência, as coisas de que acusei o governo. Se o governo quer se ater à frenagem do avião como causa do acidente, ele está sendo político, pois está tirando o assunto de um contexto muito mais amplo. Quer ocultar da opinião pública sua imperícia, imprudência e negligência, que podem causar aquele, este e vários outros acidentes. Como nas estradas. Como no futuro apagão energético. Como na educação, e assim por diante. Nada tenho do que me defender. Meu direito de cidadão é indiscutível, e não se deve discutir o indiscutível, porque ele se tornará discutível.

Consulta: Quem Nos Molda? Cultura ou Natureza?

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Como é possível que, desde o século XIX, a ciência e a tecnologia terem evoluído tanto, e o ser humano ter-se tornado pior, mais violento, mais predador? Afinal, não é a cultura que molda o homem?

Este é um engano que vem sendo cultivado desde o iluminismo pelas ciências humanas: “o ser humano nasce como uma ‘tábula rasa’, um papel em branco onde a cultura vai escrever seus valores e desvalores”. Não é assim. Nós somos 50% genética e 50% criação. Existe uma coisa chamada NATUREZA HUMANA, que não é massinha de modelar, como pensaram os regimes socialistas. A seleção natural entregou, há 100 mil anos, o homo sapiens, depois de milhões de anos de evolução (evolução não é progresso, é adaptação). Ele continua trapaceiro, assassino, estuprador, guerreador, ganancioso, tirano, predador e egoísta. Também continua capaz de cooperação, generosidade, troca justa, zelador de seus filhos, ambicioso de proeminência social, mais pela sabedoria que por dinheiro, compassivo, amigo leal de quem lhe corresponde. Este pacote complexo é nossa herança dos 100 mil anos, e estará conosco sem alteração por mais uns milhares de anos (se chegarmos até lá). A tecnologia e a ciência vieram realçar os dois aspectos da natureza humana: ficamos mais perigosos e mais solidários. É claro que o perigo aparece mais na mídia, e deve ser assim! As virtudes são uma combinação dos bons exemplos e do medo de punição. A mídia vem cumprindo seu papel. Já os governos…

Consulta: Vocação Para Gueixa

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


O Sr. uma vez escreveu, acho que no seu livro “O amor companheiro”, que todas as mulheres esperam 100% de  dedicação e entrega de seus homens, mas que se eles cederem a isso, serão imediatamente desprezados por elas. Mas eu tenho vocação para gueixa, quero que meu marido saiba que sou 100% dele, quero agradá-lo completamente, me entregar a ele. Corro o mesmo risco?

Não. Os homens são diferentes das mulheres. Você tem o que se chama de “servidão voluntária”, o que é encantador para a maioria dos homens. Os homens sonham com mulheres que os admirem, que queiram entendê-los, que se entreguem a um amor incondicional, como o das mães, que não os cobrem nem os critiquem. Seu exemplo da gueixa não é por acaso. As mais bem sucedidas no Japão recebem uma fidelidade incomparável de seu “Domo”, seu senhor. É claro que há aqueles que precisam de uma mulher desafiadora, a quem precisem conquistar a cada momento, como um reflexo de seu fetiche. As feministas da igualdade vão se irritar com isto, vão querer me massacrar. Mas sua postura acolhedora do “descanso do guerreiro” permite que você seja feliz como dona de casa, porque isto é uma escolha sua. Não é que seja “a postura certa” aplicável para todas. Mas a grande maioria das mulheres traz dentro de si um ovo de jararaca, que eclode e ganha força frente a um marido banana. Se a jararaca ficar forte, elas serão infelizes. Quanto mais banana comerem, mais jararacas ficarão. Eis porque os homens precisam manter uma tensão, ao não se entregarem por inteiro. Isto mantém o desejo delas por eles, porque o admiram, pois não o dominam. Sua estratégia, fruto do seu desejo, pode ser fonte de felicidade.

Consulta: Jovem Romântico

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Tenho 16 anos e algo que me parece uma esquisitice: meus olhos são atraídos pelos rostos das meninas, e, num segundo lugar distante, pelos seus seios. Me fascino pela beleza facial e pela expressão de inteligência que vejo nelas. Não posso confessar isto a meus colegas que vivem elogiando peitos e bundas. Eles iriam me massacrar. Tenho algo de errado?

Nada. Você é um romântico, e existe um preconceito contra o romantismo em quase todas as tribos de adolescentes. “Homem tem tesão, quem tem amor é viado”, parece ser o senso comum entre a maioria das tribos. Infelizmente, quando o adolescente não recebe apoio dos pais para suas singularidades, adota tribos como sua família. As tribos costumam ser tirânicas e impõem comportamentos iguais para todos (como costumam fazer todas as tiranias). Aposto que vários de seus colegas têm sentimentos secretos como você, e se apavoram de mostrá-los, porque têm que ser “iguais” ao pensamento dominante de seus pares. Você vive um problema político chamado totalitarismo. Ele anula o conceito de indivíduo e é muito mais sério do que você pensa. Aqui no Rio uma tribo espancou uma empregada doméstica, e estou seguro de que eles agiram por uma idéia comum imposta. Nenhum teve coragem de se contrapor ao grupo. Minha sugestão é que você escolha melhor seus amigos, segundo suas afinidades, e não por medo de ser minoria.

Consulta: Graus de Preferência Sexual

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Quando eu era adolescente, 17 anos, um primo mais velho (30 anos) de quem eu gostava muito começou a ser cada vez mais carinhoso comigo. Um dia ele disse que me amava, que queria me dar prazer, e que ia me ensinar como. Ele foi extremamente amoroso e cuidadoso, e eu gostei tanto que sempre me entreguei. Nossa relação durou até os meus 20 anos, quando tive a primeira namorada e parei com aquilo, porque me parecia traição. Mas a verdade é que me lembro dele com amor e saudade. Qual é a minha verdadeira sexualidade?

Leroy (pseudônimo, desculpe)

Pelo resto da sua carta, entendi que você nunca se sentiu atraído por outro homem, nem antes, nem depois. É capaz de você ser um hétero daqueles para quem o desejo homo nem é um assunto. Mas parece que o senso comum às vezes te põe uma pulga atrás da orelha. Você deve ter erotismo anal, nada incomum em héteros, apesar de eles desconfiarem disso. Seu primo tinha desejo homo, mas era masculino, forte e protetor. Creio que vocês tiveram uma história de amor como as da Grécia clássica: o amor parental expressado em desejo pleno de delicadeza. É uma força poderosa. O protegido encontrando o protetor que lhe ensina, e acolhe suas fragilidades com respeito. O prazer de ser passivo é algo perturbador para os héteros (acham que isso é coisa só de gay). A sexualidade humana é complexa e rica, cada indivíduo tem a sua. Aproveite em paz suas belas lembranças.

Consulta: Vergonha Obsessiva

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Meu filho foi atacado por um cão aos 6 anos. Isso lhe deixou uma cicatriz na têmpora direita de 3 cm. Ele a ignorou até quando fez 13 anos, quando passou a se preocupar com ela de maneira exagerada, achando que, principalmente as meninas, iam-lhe achar uma espécie de fantasma da ópera. Isso lhe ocupou a cabeça ao ponto de tentar lixá-la aos 16 anos. Foi mal sucedido e entrou em desespero. O que se pode fazer?

Alaíde

O problema de seu filho não é a cicatriz. É algo chamado de “crise evolutiva”. São momentos em que ficamos entre o mundo que nos chama, e o medo que temos dele. Passamos por ela ao entrar para o colégio pela primeira vez. Eis o porquê da adaptação. Outras se dão quando da entrada da adolescência (o caso de seu filho), porque passamos a nos interessar pelo sexo, e pela nossa cotação no mercado; na escolha da faculdade; na saída da faculdade e procura de sustento; no casamento; no nascimento de filhos; nas separações; nas mudanças profissionais; na aposentadoria; na menopausa, na constatação da velhice e proximidade da morte. Seu filho teve uma dessas, o medo do mundo vencendo, agravada provavelmente por uma depressão e um transtorno obsessivo. Sugiro, em primeiro lugar, que ele seja medicado por um psiquiatra. Aliviada sua dor (como o será, pelos remédios), que ele seja encaminhado para uma psicoterapia que terceirize a função de pai e o ajude a se socializar. Não é vergonha nenhuma, todos temos nossas limitações, e reconhecê-las é uma bênção para nossos filhos.

Consulta: Cotas Raciais

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


O que o Sr. tem a dizer sobre as cotas raciais?

Arnoldo

Minha filha recebeu um questionário do colégio que exigia que ela declarasse sua raça. Ela ousou declarar que sua raça era “humana”. A professora passou-lhe um carão. Quando me contou isso, disse-lhe que ela havia repetido o gesto de Einstein, diante da mesma pergunta em Ellis Iland, quando de sua entrada nos USA. O conceito científico de raça diz respeito àqueles indivíduos que podem se cruzar e dar crias sem problemas. As diferentes etnias são subespécies. Resulta que todos os seres humanos são da mesma raça. Mas assim mesmo temos preconceitos. Com o quê, afinal? Quem se lembra dos tempos de colégio poderá responder a isso sem dificuldades. Temos preconceitos com os diferentes de nossa tribo. Quem usava óculos no colégio era chamado de “quatro-olhos”; os mais baixos de “tampinhas”, e assim por diante. Na antiguidade, um desconhecido era enfrentado até à morte, e mesmo hoje em dia, na Nova Guiné, se dois desconhecidos se encontram, passam horas buscando parentes em comum para não terem que se matar. Se você é branco e encontrar um branco tatuado, com piercings, musculoso e mal-vestido, vindo contra você na mesma calçada de uma rua escura, sua tendência é trocar de calçada. Se você é branco e encontrar um negro de meia-idade, de terno e com uma pasta na mesma calçada, seguirá adiante sem aflições. Ali Kamel, um articulista que admiro, tem mostrado que nosso problema é mais com a pobreza do que com a cor (não que a cor seja insignificante), e que, se houver cotas, que elas favoreçam os pobres em geral, e não os que se diferem pela tonalidade da pele. Tudo o que não queremos é importar o ódio americano pelas diferenças de cor.