quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Consulta: Não Amo Meus Filhos

 (31 de janeiro de 2012)


Tenho dois filhos lindos, de 5 e 7 anos, mas guardo um segredo de algo que me produz muita culpa: não amo meus filhos. Vejo outras mães e seus olhares cheios de amor pelos filhos delas e sinto inveja e culpa, pois não posso fazer o mesmo. Sei que faço tudo por eles, que sou considerada exemplar como mãe, sou carinhosa etc., mas me sinto uma atriz, porque falta amor no meu coração. Eu tenho alguma doença?

Almerinda

Prezada Almerinda,

Não se assuste, você não sofre de nenhuma doença. Muitos pais e mães vivem uma condição igual à sua. Seus sensos de responsabilidade em relação aos filhos são tão fortes que impedem o sentimento de amor. Mas não impedem a produção de amor. Você ama seus filhos na medida em que produz tudo que estiver ao seu alcance para fazê-los felizes, e percebe que eles são a coisa mais importante em sua vida. Mas filhos também são um fardo e uma preocupação constante. Desde que eles nascem se implanta escondido atrás em nossas cabeças o medo surdo e permanente de que eles morram. E mesmo pais que sentem amor, não o sentem o tempo todo, longe disso. Quero saber quem sente amor na hora em que eles nos acordam de madrugada aos berros, a gente faz de tudo e eles continuam berrando. Ninguém diz, mas a vontade de atirá-los pela janela é freqüente. Quando eles crescerem e deixarem de ser um fardo, é provável que o sentimento de amor apareça.

Consulta: Atração Por Cafajestes

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)


Sou casada há 14 anos com um homem bom e sério, trabalhador e honesto, nunca nos deixou faltar nada, não tem vícios e é apaixonado por mim. Mas, não sei por quê, até o jeito de ele respirar me irrita. Não consigo tirar da cabeça o namorado que me deixou e que era o oposto dele: namorador, infiel e tudo de ruim, mas me completava sexualmente. Eu sou um monstro de ingratidão?

Aflita de Bauru

Prezada Aflita,

 

Você viu o filme “Dona Flor e seus dois maridos”? foi um sucesso tão grande porque atendia o desejo da maioria das mulheres: segurança e paixão. A maior parte das mulheres precisa de muita ajuda, pois criar filhos sozinha é um pesadelo. Você tem essa ajuda de parte do seu marido, que é um “papai” típico. Ao mesmo tempo há dentro de você uma força da natureza que anseia por ter filhos enérgicos, atrevidos e namoradores, que possam produzir dezenas de outras crias, mesmo que não liguem a mínima para elas. Você anseia por um “cafajeste do bem”. Explico: é aquele homem que não está nunca no seu bolso, mas entende e aprova todos os seus desejos sexuais. A pouca atenção que ele te dá é suficiente para te arrebatar, para você querer sempre mais, mesmo adivinhando que não vai ter. Dona Flor tinha o melhor dos dois mundos, não são muitas as que podem ter a sorte dela. Um homem que se entrega 100% a uma mulher tende a ser desprezado. Mas pense bem, você tem a metade da sorte de D. Flor.

Consulta: Desejos Não Atendidos

 (Publicado em 31 de janeiro de 2012)



Eu gostaria de fazer uma pergunta que me intriga: 

Por as pessoas (nós) sempre conseguimos para nós mesmos aquilo que não desejamos.
 Por favor deixe me expicar: não desejamos a infelicidade, no entanto a temos, não queremos a miséria e atemos, desejamos a paz e; temos a guerra. Por que por mais que desejemos algo ele sempre vem como nós não o desejemos.

Não desejamos o infortunio dos outros e fazemos para que
 eles tenham.

 Acho isto uma questão de dificil compreensão para mim. Pobre mortal (felizmente) pois jamais desejaria a imortalidade. 

Obrigado.

Abilio de Souza

(colocou seu endereço, não divulgado por esse site)

p.s.: nunca quis morar neste endereço e estou há 20 anos nele

Prezado Abílio,

Sua carta fala de duas coisas-chave que guiam nossa vida: o desejo inconsciente e a natureza humana. Claro que ninguém tem vontade de guerra ou de miséria. Mas a vontade é a parte consciente do desejo. Cada vez que eu falar em desejo você pense numa força que nos move, mora em nosso cérebro e da qual conhecemos muito pouco. A mãe natureza, através da seleção natural, enfiou ela em nossas mentes como um programa de computador, um software. Ela não está interessada em nossa felicidade. Só quer que a gente reproduza. Se, para a reprodução, interessar a conquista da tribo inimiga (que só é inimiga porque compete conosco), o desejo vai nos empurrar para a guerra, para o rapto, para o estupro, para a rapina dos bens alheios. Nós somos ladrões, trapaceiros, estupradores, levadores de vantagem, todas as coisas horríveis que se puder imaginar, se isso servir à reprodução. Mas temos também inteligência e consciência, o que nos permite buscar a felicidade. A ética e a justiça estão no cérebro. Elas são interesseiras quanto à reprodução, pois não somos apenas importantes socialmente (uma ambição de sermos desejáveis sexualmente) pelo poder e pela riqueza, mas também pela sabedoria e pela boa reputação de justeza nas trocas que fazemos. Ambição de importância não é nada feio. Feio pode ser o jeito de adquirir essa importância. O filósofo Spinoza disse que “a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam”. É sobre isso que sua carta me permitiu falar.

Natureza Humana: Natureza Humana Existe

 (Publicado em 20 de janeiro de 2012)


— Tá maluco, Dr. Daudt? Todo mundo sabe que a natureza humana existe! É que nem a piada do sapo e do escorpião, quando ele pica o sapo no meio do rio e os dois vão se afogar, e ele diz: “Eu não posso fazer nada, é da minha natureza…”

— Aí é que está, amigo. Para os bichos, todo mundo reconhece que eles têm natureza, que têm instintos. E você não está de todo errado. O que acontece é que você é engenheiro, um homem das ciências exatas. O mais engraçado é que você tem a companhia dos não formados e do senso comum. Qualquer pessoa vai dizer: “Isso ele puxou da família do pai”, e ninguém discorda.

Mas na Academia, no mundo das universidades, das pessoas letradas, a coisa é diferente. Eu, psicanalista, sou das humanas, como a psicologia, a sociologia, a antropologia, as políticas, a história etc. Pois você acredita que essa turma passou afirmando, desde seu nascedouro, que o ser humano era uma criatura em separado do resto dos bichos? Pode ter começado como coisa religiosa, mas depois, sobretudo depois de Marx, mudou para a “tábula rasa”.

Para eles o ser humano nascia como uma folha em branco, e ele seria o que a “cultura” (os conhecimentos transmitidos) escrevesse nele. Ninguém explicava de onde tinha vindo a tal da cultura, mas ela era a origem de todas as malvadezas do ser humano: a ganância, a trapaça, a inveja, o ciúme, a cobiça, a traição, a exploração de um pelo outro, e, é claro, as desigualdades e o capitalismo. Mas as bondades também: o comunismo iria pegar as crianças e forjar o puro e novo homem, escrevendo nele só belezas.

Este tipo de pensamento dominou as ciências humanas desde então.

O que é a natureza humana, afinal? Pense num computador. Quando você o compra, ele já vem com um monte de programas instalados. Somos nós, quando nascemos. E isso é a natureza humana. Depois você acrescenta outros que te interessam (seria a “cultura”), que ele só absorve porque já tinha aqueles programas do nascedouro. Eu acho que a comparação está boa. Veja como um bebê vira a cabeça para o lado certo quando é posto para mamar. Ou como chora com seus incômodos. Ninguém ensinou essas coisas a ele. É do seu programa operacional. Por que temos medo de altura, do escuro, de insetos voadores, baratas e cobras? Tivemos aulas disso?

As noções incorretas da ciência da natureza afetam nosso dia a dia. Minha filha voltou da escola me contando que teve que preencher um formulário onde lhe perguntavam sua raça. Ora, não existem diferentes raças na nossa espécie. Escreveu: HUMANA. No dia seguinte a professora censurou-a por debochar do questionário. Ela respondeu (porque já tinha conversado comigo) que havia respondido da mesma maneira que Albert Einstein, em Ellis Island, USA, 1937, e se a professora não achava que era um bom exemplo. Como foi aplaudida por toda a sala, a professora se calou.

Mas fico pensando em quantas crianças foram forçadas a se rotular brancas ou negras, importando um ódio racial de uso totalitário, semelhante à idéia de que somos seres vazios, prontos para mais “sábios” preencherem ao sabor de seus interesses.

Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.

Natureza Humana: Palmada

 (Publicado em 18 de dezembro de 2011)


Há um fato de que a maioria de nós não sabe ou esquece: o exercício da autoridade, ou das leis, se baseia, em seu extremo, no uso da violência. Como não pode existir lei sem a punição correspondente, senão ela será desprezada, a punição vai, desde a ameaça, à execução de castigos, é por isto que precisamos de forças armadas, como o visto nas ocupações das UPP nos morros do Rio.

Há mais de dez mil anos o homem vive em cidades. Convive com pessoas que não são de sua família, nem de sua tribo. Antes disto, qualquer contato com estranho resultava em luta mortal. Estranho = inimigo. É fato até hoje, na Papua – Nova Guiné, se dois estranhos conversando não descobrirem parentes em comum num encontro, partem para um embate mortal.

Como foi possível, pois, a convivência pacífica de estranhos em cidades? Pela instituição do Estado, que se tornou monopolista da violência. Pela invenção das leis. Pelo estabelecimento das punições aos transgressores. O Código de Hammurabi impunha punições bárbaras: “Olho por olho, dente por dente”. As leis e as punições foram se tornando mais civilizadas, mas o princípio do monopólio da violência pelo Estado continua sendo um dos pilares da democracia. Você tem uma contenda com seu vizinho? Traga-a ao Estado, pois se você quiser resolvê-la com suas próprias mãos, você será criminoso também. Há exceções: legítima defesa e violência consensual (MMA e S&M).

Então, por que eu sou contra a lei da palmada? Imagine levar uma criança transgressora às barras do tribunal para que o Estado a punisse. É coisa de doido.

Defendo que a palmada (que promove mais susto do que dor ou lesão) seja igual à atitude dos gorilas, que impõem sua autoridade ao bater no peito, no urro e no avanço assustador sobre o oponente, sem danos físicos. Eles só dizem: “Eu sou mais forte, eu estou no comando”.

Castigos que causam lesão já são punidos por leis. Uma família não passa de um pequeno Estado, com chefe responsável pelas leis e as punições que impõe. Nascemos pequenos trogloditas, a educação é um processo civilizatório. Dez mil anos em alguns. Não precisamos da tutela do Estado maior para dirigir nossas famílias. É tentativa de autoritarismo, sutil que seja. Imagine a cena de um chefe de família amedrontado pela lei da palmada e pela denúncia do vizinho. Qual a alternativa? Convencer com palavras seu filho de um ano que ele não deve machucar seu irmão bebê? Que tal, hein? Sua raiva sairá muito mais cruel e sutil. Você já levou “gelo”? Então sabe o que do que estou falando. Pais podem torturar seus filhos sem encostar um dedo.

Daí, uma proposta singela, vinda dos islâmicos: a adoção de chibatadas como pena alternativa para pequenos delitos. Deixemos de hipocrisia: a prisão para quem não ameaça a sociedade é castigo brutal, uma escola de revoltados. “Ah, ele vai virar ‘noivinha’ no primeiro dia”. É tortura terceirizada.

Posto diante da escolha: dez chibatadas pelo carrasco mecânico (ajustado para não causar lesões) ou dez meses de prisão? Adivinhe a escolha?

Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.

Natureza Humana: A Grande Traição

 (Publicado em 10 de dezembro de 2011)


Quatro amigos se encontram num restaurante quieto, eu, mais um anestesista cristão, adorador da lógica (donde, em perene  e lindo conflito), um advogado e economista, e um analista de sistemas, que calha de ser meu cunhado (ó sorte, um cunhado de quem se gosta).

Não quero saber de psicanalistas, quero diversidade de conhecimento científico. Somos neo-iluministas, apreciadores da razão. Hamilton, nosso advogado, desta vez estranhou a valorização da virgindade, como as sacerdotisas vestais em Roma, e a associação da virgindade com a pureza, até nossos dias.

Quando o assunto é teologia, ética, filosofia ou epistemologia, o advogado e o anestesista produzem dados que nós, psicanalista e analista de sistemas (eu digo que ele é muito mais generalista do que eu, já que eu analiso apenas um sistema, o psi, e ele analisa múltiplos) questionaremos, abriremos debate. É muito divertido e enriquecedor. É como uma namorada minha reparou quando fomos de carro para Búzios (à paulista, dois homens na frente, duas mulheres atrás, nem sei se é a praxe paulistana, mas é assim que chamamos no Rio). Minha irmã dormia, minha namorada estava ouvindo minha conversa com o cunhado.

Comentou: “Vocês só falaram assuntos! Não falaram nada sobre os comportamentos das pessoas, discutiram sobre as vantagens do ciclo Otto sobre o ciclo Wenkel nos motores à explosão. Nós nunca falaríamos sobre isto!”

É coisa de homem, querida, assim são nossas conversas no restaurante quieto. É da natureza humana.

Pois então, colocado o assunto da virgindade, a bola estava comigo, aquele que, dentre outras, gosta da psicologia evolucionista.

A pior traição que um homem pode sofrer é criar o filho do cuco. O cuco é uma ave que põe seus ovos em ninhos de outros. O filhote do cuco costuma ser muito mais forte que seus “irmãos”, e a primeira providência que toma é empurrá-los para a morte, comendo todo alimento que seus “pais” trazem.

Imagine agora um homem dedicado a criar um filho que não é seu, o bastardo. Anos de trabalho e de cuidados para alimentá-lo, e educá-lo sem saber que é filho de outro homem. É completamente diferente da adoção, quando este cuidado é por escolha, amor e com plena consciência.

É a maior traição que um homem pode sofrer. A mãe tem certeza que o filho é seu, mas, e o pai? Não por acaso um judeu só o é se for filho de judia.

Eis porque a virgindade foi eleita como virtude: ela era o oposto da traição e da promiscuidade. O desvirginador era o pai, por certo. Isto antes dos exames de DNA. Mas essas modernidades levam tempo para entrar em nossa compreensão emocional.

A espécie tem que lidar com o cio oculto: a mulher pode ser fértil 30 dias por mês, com maiores probabilidades em torno do 14º dia do ciclo. Não há controle possível. Estupros, violências contra a mulher e adultério aceleram a ovulação. O homem que cuida de sua mulher e de sua cria tem a vantagem de fazê-los se dar bem. Pela fertilidade, o cafajeste sempre levará vantagem. Mas a cria bem cuidada estará sempre em vantagem.

Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.

Natureza Humana: Classe Média

 (Publicado em 02 de dezembro de 2011)


Ele nasceu na classe média alta (no Rio, significa ser rico). Freqüentou os melhores colégios, andou de barco a vela da família (yacht, naquela época, e não iate, entendeu?), os Country Clubs da vida, teve motorista enquanto não podia dirigir, e carro quando pôde. Seus amigos eram socialites e aristocratas na adolescência e quando adulto jovem, casas de campo, cavalos e haras, sabia o que eram bobeches et sousplats, as técnicas de comer escargots, alcachofras, e de como usar a lavanda. Era fluente em inglês britânico e em francês, afinal, quem não era? Na casa de um amigo, um desenho de Picasso no lavabo. Tudo era “natural” e deveria ser percebido com um olhar blasé. Entusiasmo? Coisa de gentinha.

Mas seu pai havia ganhado a vida a partir da simplicidade dos filhos de políticos honestos de antigamente. O avô, Chefe da Casa Civil de dois Presidentes, Ministro do Supremo, considerava-se um servidor público (no sentido original, aquele que serve aos interesses públicos), e, portanto, nunca foi rico. Hoje, no cinismo em que os lulopetistas nos mergulharam, dir-se-ia que ele era otário. Mas na época, seus valores eram admirados, e foram transmitidos às gerações posteriores. O pai, ainda que rico, nunca mimou filho algum, e tirar dinheiro dele era um sofrimento. Foi o estímulo para que nosso personagem procurasse ganhar o seu, ser independente. Ele saboreava a convivência de seus amigos ricos, mas sabia que a vida era outra coisa.

Foi quando viu um anúncio: Le “must” de Cartier. Mostrava jóias e relógios. Teve um choque: então, ter essas coisas era uma obrigação, um must? E percebeu o aprisionamento que a classe rica significava. A formatação de uma vida, de forma tirânica, sem consulta a si mesmo, apenas consultando os must, a lista dos itens obrigatórios que adornavam e davam o valor que uma pessoa teria. Nada que se referisse a ela e a sua existência interior, somente os berloques que a adornavam. Por tais coisas seria considerado um winner (em bom português, um fodão), ou um loser (idem, um merda), e iria viver na agonia do fio da navalha: qualquer mau passo poderia ser fatal. Uma fonte de angústia capaz de jogar qualquer um na depressão, quando não no suicídio.

Ao se dar conta desta beira do abismo em que poderia viver, nosso personagem deu um passo de extrema ousadia: resolveu habitar em algo que ele chamou de “classe média reinventada”. Ele já tinha visto a Danuza Leão fazer uma coisa parecida, ao se mudar para o edifício Seabra (um equivalente ao Dakota, em Nova York). Algo como “não estou nem aí para o que as pessoas vão dizer, eu quero é ser simples, desfrutar dos requintes de que eu goste, não ter que me matar para pagar um custo fixo enorme”.

O fantástico é que a classe média reinventada não tem nenhum must, nenhuma obrigação. Tanto você não tem que jantar no Grand Vefour em Paris, quanto você não tem que pôr um pingüim em cima de sua geladeira. É incrivelmente mais barato, e extraordinariamente mais autêntico. Você pode experimentar ser o que é!

Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.