quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Natureza Humana: Genes do Vício

 (Publicado em 02 de fevereiro de 2011)


Ela chegou ao escritório do advogado e foi dizendo que queria se separar. “Quantos anos a senhora tem?” Tinha 75 e estava casada há 52 anos. O advogado, pasmo, quis saber porquê. “O pai do meu marido era alcoólatra, por isso ele jurou que nunca ia pôr uma gota de bebida na boca. Cumpriu a promessa até três anos atrás, quando se aposentou. Os amigos cervejeiros disseram que agora ele podia, e ele começou a beber. Agora chega em casa de porre e me bate. Quero me separar!”

Esta história, verídica, é assustadora. O filho intuiu que tinha uma herança maldita, fez de tudo para que ela não o atingisse, mas deu mole aos 47 do segundo tempo… e tomou um gol!

Ouvi dizer, há tempos, que havia um gene para o alcoolismo, e não acreditei. Depois de conhecer essa história, fiquei embatucado. Anos de clínica mais tarde, entendi que hereditário não era o alcoolismo, mas os vícios. Pois fui tomando contato com uma multiplicidade de vícios insuspeitados: tabagismo; consumismo; sado-masoquismo; jogos variados a dinheiro (cavalos lerdos; mulheres ligeiras; roleta; pif-paf; bingo etc.); drogas lícitas ou não; “donjuanismo” (o vício da conquista, que chega ao clímax e se extingue com ela), nos Estados Unidos confundido com vício do sexo; winner-loser (em tradução livre, o vício do jogo “fodão-merda”, em que alguém precisa se afirmar como melhor humilhando o outro, por pura insegurança), e tantos outros.

O que é vício? É um comportamento compulsivo (mais forte que você), repetitivo, que vai contra os seus interesses mais prezados, que te autodestrói, que te humilha aos seus próprios olhos, mas que dá um prazer imediatista, uma ilusão de grandeza, uma sedução de que os problemas do mundo se foram.

Ele pode ser tão genético quanto a depressão o é. A depressão é um mecanismo de defesa contra os horrores do mundo: se o estresse é grande, o sistema entra em pane, e ficar debaixo das cobertas pode ser necessário.

Aí pode entrar o vício como uma espécie de remédio. De fato, o alcoolismo é o remédio mais comum contra a depressão. É meio tragicômico, mas vários pacientes recusam antidepressivos (porque podem viciar) enquanto aceitam o álcool e a cocaína como remédios “naturais” com que aliviam suas dores. Não os recrimino. Eles viram seus pais caretas tomando Valium e não querem virar pessoas iguais a eles.

É um tanto trabalhoso convencê-los de que o antidepressivo é uma ferramenta para que mudem suas vidas. Porque os antidepressivos são não-naturais, são “químicos” diferentes. Naturais mesmo (atenção, naturebas) são a depressão e os vícios, uma dobradinha milenar.

Estou me lembrando de um amigo clínico que, perguntado por uma cliente com infecção se ele não tinha uma coisa mais natural que o antibiótico para tratá-la, respondeu:

_Não há nada menos natural do que um antibiótico, cuja tradução é “contra a vida”. Mas é contra a vida do germe e a favor da sua. Se a senhora tem peninha dos germes, bem, a senhora procurou o médico errado, mas arque com as conseqüências de fazer bem a eles.


Natureza Humana: Negação

 (Publicado em 13 de janeiro de 2011)


Minha cabeça entrou em parafuso quando soube, hoje de manhã, que a casa de um amigo meu na serra foi varrida pela tempestade de ontem, matando uma família a quem ele a tinha alugado. Imagino, com imensa dor, a dele.

O que aconteceu comigo? Por acaso eu não sei que os verões trazem enxurradas, e com elas, riscos de morte? Que grande surpresa é esta?

É o rompimento de um importante filtro para o bom funcionamento do nosso cérebro, uma coisa como um firewall de computador, um dos principais mecanismos de defesa que nos permitem viver e funcionar chamado NEGAÇÃO.

Ai de nós se não houvesse a negação.

Quer experimentar? Você vai morrer, não é mesmo? E pode ser hoje, por um assalto, por uma bala perdida, por um enfarto fulminante. Aquela dorzinha na barriga? Pode bem ser câncer. Já apalpou seu peito? Vai viajar? Para Paris? Lembra daquele vôo da Air France? Onde está seu filho agora? Tem certeza? Ele está dirigindo? Ihh… Seu patrão estava sério hoje, quando falou com você. Será que o “debaixo da ponte” não te espera amanhã? E que tal ser velho pobre? Seus filhos vão te pôr num asilo, num depósito de moribundos, jogado e babando numa cadeira dura, olhando uma televisão preto-e-branco, enquanto ninguém te troca o fraldão?

Quem pode viver pensando nessas coisas? Nós não sairíamos de casa (blindada, no alto de uma colina, cheia de para-raios).

É aí que entra o antivirus negação. Ele permite que nosso cérebro continue funcionando bem, sem travar. “Não, minha filha dirige bem, e é responsável, ela pode ir à festa e voltar às três da manhã que não vai acontecer nada de mal”. “Ora, o transporte aéreo é o mais seguro que existe, muito mais que atravessar uma rua”. “Eu tenho feito bem o meu trabalho, e se o patrão estava sério, ele teria seus outros motivos”.

Ou, como nem poderia passar pela cabeça do meu amigo: “Nós já temos esse terreno há setenta anos, e ele nunca foi uma área de risco. Por que me preocupar agora?”. Nem poderia, nem passou. Ele, sem saber, estava usando um modulador da negação chamado probabilidade.

Não há nada garantido nessa vida (exceto a morte e os impostos). Eu moro numa vila. Passam helicópteros por cima. Quem me garante que um dia desses… Ninguém, certo? Mas as probabilidades são pequenas de eu acordar (ou não) com um aparelho em cima do meu telhado.

Por outro lado, se alguém for atravessar a rua fora da faixa de pedestres, com uma venda nos olhos, suas probabilidades de morrer atropelado são altas, mesmo que ele diga que Santa Caropita o protege, e que nada vai lhe acontecer.

Ele estará exagerando na negação e desconsiderando as probabilidades. Ou seja, ele estará prejudicado no seu software de bom funcionamento. Em outras palavras, o pobre coitado está com algum parafuso solto, meio pirado, ou andou bebendo água que passarinho não fuma, ou coisas que tais, capazes de provocar desarranjo no delicado equilíbrio que o nosso cérebro precisa para funcionar: avaliar a realidade e saber o quanto é necessário levá-la em conta, e o quanto é necessário descartá-la.

Natureza Humana: Comida

 (Publicado em 08 de novembro de 2010)


Pense que você está na savana africana há 100.000 anos. Sua tribo é pequena, as mulheres se reúnem para trocar informações sobre onde podem coletar raízes e frutos, e trocar favores para ter com quem deixar seus pequenos enquanto se aventuram nesta empreitada. As mais faladeiras são as mais simpáticas, as mais capazes de estabelecer redes sociais de informações sobre os lugares de coletas e as mais hábeis em obter proteção para suas crianças. A isto, Darwin chamou vantagem evolutiva.

Essas mulheres deixaram mais filhos que as casmurras, as ensimesmadas de poucas falas. Não é de espantar que as mulheres de hoje falem pelos cotovelos, numa média de três vezes mais que os homens. Elas salvaram seus filhos. É algo que temos que aturar? Ou admirar?

E os homens? Mais musculosos, menos apegados às crias, iam à caça, silenciosos, comunicavam-se por sinais, para não afugentá-las. Traziam as preciosas proteínas, que nos deram cérebro diferenciado. Cansados, sentavam-se ao redor da fogueira em silêncio cúmplice, amizade de homem. Não é de admirar que hoje, sentem-se em torno da TV, tomando cerveja e urrando com os lances do futebol. Amizade de homem.

Nem as raízes e frutas eram fartas, nem as proteínas da caça eram fáceis. Havia substâncias nelas que eram capazes de se acumular no corpo como uma reserva de combustível: os açúcares (carboidratos) e as gorduras (lipídios). Se a turma passasse um tempo de vacas magras, o corpo iria se abastecer deles. Novamente aí entra Darwin a dizer: quem gostou mais de açúcares e gorduras deixou mais descendentes. Nós somos descendentes daqueles africanos que gostavam mais de açúcares e gorduras, pois os outros morreram de inanição.

Resultado: pense num cheesecake com uma base de farinha de trigo (carboidrato, manteiga e açúcar), coberto de queijo cremoso (proteína e gordura), arrematado com geléia de framboesa (açúcar e mais açúcar). Olhe bem para aquela fatia gorda na sua frente. Repare agora no que está acontecendo com suas glândulas salivares. Elas estão indiferentes, ou jorrando água na boca só de você ler isto?

Agora, uma pequena diferença: na savana africana você tinha que ralar para pegar um pouquinho de proteína, de açúcar e de gordura. Não havia obesidade entre nossos ancestrais, muito menos academias de malhação.

Você está lendo o jornal na poltrona. O telefone está ao alcance da sua mão. Nele está gravado o número do serviço de entrega da quantidade de proteína, gordura e açúcar que você quiser. O que você acha que os seus genes vão pedir? Que você se levante e saia à caça? Que você procure suas amigas para saber onde ficam as melhores raízes e frutas?

Toda a parte boa pode ser entregue em casa: a fogueira está lá, basta chamar os amigos para ver TV com cerveja e pizza; as mulheres estão na cozinha, conversando sem parar, sem ter ido à coleta, pois a coleta foi até elas.

É esta a armadilha que a natureza nos preparou. Ela nos seduziu para que acreditássemos que isto é a tal da felicidade.

Natureza Humana: O Lado Negro Da Força

 (Publicado em 23 de outubro de 2010)


“Fulano é um psicopata: matou a família e foi ao cinema!” 

Sinto muito, fulano é um ser humano. Pergunte-se, ninguém está ouvindo: você nunca pensou, “só matando?”; você não vibrou, vendo “Tropa de elite 2” quando o Nascimento enche o político corrupto de porrada?; você não participaria de um linchamento, com a galera gritando “mata, mata”?; você não teve uma tentação quando viu que te deram troco a mais? Nunca experimentou a sensação de run amok? (to run amok é o que dizem do elefante que enlouquece e sai arrasando tudo o que vê pela frente, árvores, aldeias ou pessoas), um ódio tão intenso subindo pela garganta que você percebe que não vai responder mais por si, que vai quebrar pratos, cadeiras e a cabeça de quem te produziu o ódio, até ver os miolos gosmentos dele se esparramarem pelo chão? Nunca devaneou com coisas parecidas? De passar aquela filha de uma senhora de reputação duvidosa peça por peça por um moedor de carne?

E convidado por um político para receber carona num Gulfstream 400 (é um jatinho particular lindo) para uma tarde em Fernando de Noronha, às custas do dinheiro do imposto do contribuinte, mas para o seu gozo único, não pensaria algo do tipo, “ele vai para lá mesmo, qual o problema de eu ir junto?”, e ainda não perguntaria, “posso levar minha namorada?”.

Eu sei, eu sei, você não faria nada disso. Primeiro, porque você recebeu uma educação esmerada, e na sua casa todos são críticos de quem fazem essas coisas. Segundo, porque essas ocasiões nunca se apresentaram a você.

“A ocasião faz o ladrão” foi uma das coisas que minha mãe me ensinou: não deixe dinheiro solto. A empregada pode ser de confiança, mas é um abuso tentá-la. Se ela roubar, a culpa é sua! “Confie, desconfiando”, dizia o Marechal Floriano Peixoto, outro que entendia da natureza humana.

É verdade, nós somos capazes desses horrores todos, principalmente se a sobrevivência está em jogo. É bem verdade que um percentual mínimo da humanidade tem o gozo especial de fazer os outros de idiotas e rompe todas as regras sociais com o cuidado de não ser pego. São os psicopatas.

Mas a grande maioria de nós funciona direitinho, respeita as leis, sobretudo se elas funcionam, e, se transgredidas, há punições (leis sem punições “não pegam”) que são aplicadas, muitos de nós fomos criados vendo as vantagens do agir bem: “Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem” (como dizia Jorge Benjor).

Meu ponto é que nosso lado negro não surge porque haja bonzinhos e haja malvadinhos. Somos todos humanos e compostos das mesmas coisas, em quantidades diferentes, e vivemos em circunstâncias diferentes.

Uma das coisas que temos é algo espetacular em nossa natureza, chama-se “altruísmo recíproco”: faça-me algum bem e eu terei vontade de retribuir (e se bancar o esperto, se não retribuir, eu vou me afastar de você, pois percebi que você é do tipo “leva vantagem”), e ao retribuir, você vai me ajudar de novo, e assim por diante.

Natureza Humana: Maquiagem

 Existe na natureza uma coisa chamada seleção sexual. Na espécie dos pavões quem escolhe é a fêmea. Um pavão tem que aparecer espetacular, e eles o são. As fêmeas são sem graça, mas não precisam de graça, são elas que escolhem. Os cientistas descobriram que podiam maquiar um pavão, aumentando sua cauda com mais penas e penas mais compridas. Foi o pavão escolhido!

Na nossa espécie homens e mulheres se maquiam, mas com finalidades diferentes.

A nossa diferença dos pavões é que neles só as fêmeas escolhem. Entre os homo sapiens, ambos escolhem.

Os machos escolhem pelo visual que lhes desperta desejo, pelas características que indicam fertilidade e bons genes para suas crias. São elas: beleza (cujo principal critério é a simetria corporal, principalmente a facial); saúde (postura ereta; carnes abundantes e firmes, mas não tanto que pareçam masculinas, pois carnes firmes demais sugerem excesso de testosterona, portanto, esterilidade; seios fartos para uma boa amamentação; quadris largos, para um parto fácil; mucosas rosadas, como o lábio e o leito das unhas; escleróticas límpidas – a parte branca dos olhos); juventude (essencial para a fertilidade, e isto significa a partir do momento em que a jovem apresenta caracteres sexuais secundários, como peitos e quadris, por isto é tolice dizer que um homem é pedófilo por desejar uma menina assim de doze anos – ela já é capaz de ser mãe- e antigamente, muitas se casavam com esta idade). Não lhes importa tanto a origem social, a educação ou o requinte para que o desejo sexual lhes seja despertado. Para outros compromissos a coisa é diferente.

Mas só ouvimos mulheres dizendo que o ideal é serem “durinhas”, secas como um varapau, e que usar esmalte verde e batom roxo é o máximo. Como se explica?

Elas estão seguindo uma moda ditada por homens que não se interessam por mulheres, e competindo com outras mulheres. Para homens que gostam de mulheres, elas só se parecem doentes e estéreis, ou seja, não desejáveis.

Maquiagens mandam mensagens.

Mulheres: Lábios inchados; batons rubros; unhas enormes; próteses mamarias gigantescas, roupas mínimas que mal seguram seus conteúdos, e seus congêneres, dizem que ela está pronta para a guerra, nem que seja por uma noite. O contrário disso, ou seja, o low profile, a discrição, dizem “eu sou confiável para a vida toda”. Qualquer maquiagem, afora o negro que circunda os olhos, se sair dos subtons do vermelho, dará a impressão de doença.

As fêmeas escolhem pelo visual que lhes desperta interesse (“Fulano é interessante”). Isto varia de tribo para tribo. Ao contrário dos homens, para elas nunca será um homem nu. Ele pode estar vestido de Armani e comendo no Oister bar, ou tocando guitarra de jeans esfarrapado, cheio de tatuagens, ele precisa enviar seu contexto, ou não será considerado “interessante”.

Maquiagem mandam mensagens.

Homens: saiba a tribo que lhe interessa. Mauricinho? Porsche, cashmere no ombro e Rolex. Metrossexual? Ih, desculpe a ignorância, só sei que eles se depilam. E assim por diante…

Sadomasoquismo

(Publicado em 14/06/2019)


 

O sadomasoquismo é o pior dos destinos da raiva (o melhor é conseguir que a justiça seja feita). Ele costuma ser visto como uma perversão sexual, com botas, chicotes e couro envolvidos, no entanto é muito mais comum que isso. Ele se infiltra nas relações como um jogo sutil de vinganças, de humilhações e de maltrato. Ninguém é só sádico ou só masoquista, mas geralmente se é principalmente sádico (o fodão que faz o outro de merda) ou principalmente masoquista (o que se oferece para ser humilhado). Infelizmente, esse jogo começa dentro de nossa cabeça, entre um ideal perfeito que nos julga e critica (o Superego) e nós mesmos (o Ego), e que depois transferimos para fora, ora nos pondo na posição do Superego e posando de formidável julgador dos outros, ora nos sentindo um merda e tendo raiva disso.

 

Por que as crianças atuais são pentelhas

(Publicado em 09/06/2019)

 

No artigo que vem depois do meu comentário, o Pondé arriscou um certeiro vetor. Mas não creio que seja o mais importante, que dirá o único.

Acho que Freud e as esquerdas têm culpa nessa história. Freud, pela descoberta de que a criação marca as crianças; os hoje pais que estiveram em análise botaram a culpa de seus problemas nos próprios pais, daí morreram de medo de “traumatizar” seus filhos e se sentirem culpados depois. As esquerdas, ao dividir o mundo em opressores e oprimidos, seduziu os jovens a se identificarem com os oprimidos e a seus pais como os opressores. Quando se tornaram pais, passaram a morrer de medo de serem os “opressores” e deram de paparicar os filhos, a se preocupar se os filhos os amam ou odeiam.

No Brasil, para agravar a situação, a partir da ditadura o conceito de autoridade ficou confundido com o de autoritarismo, o que só fez piorar as coisas. Os filhos ficaram pentelhos, os pais começaram a odiar isso e a operar a formação reativa de serem “bonzinhos” com os filhos. Aí é que a vaca foi pro brejo…

 

Luiz Felipe Pondé – FOLHA DE SP – 08/07/19

Os pais sentem culpa por acharem um saco tomar conta dos ‘pentelhos’

Vou descrever uma cena e depois vou perguntar o que você acha dela. Cenário: um restaurante bem frequentado da zona oeste de São Paulo.

Uma criança com cerca de cinco anos corre perto da mesa onde se encontra sua família, com uma taça de vidro de vinho vazia nas mãos. A família conversa acaloradamente. O restaurante cheio, as mesas umas ao lado das outras. Sexta-feira à noite. De repente, um ruído de vidro quebrando. A criança, o que era óbvio de se esperar, derrubou a taça no chão.

É razoável imaginar que os pais não perceberam que a criança corria de um lado para o outro com a taça de vidro nas mãos. Às vezes, ainda mais numa sexta-feira à noite, tudo o que você quer é relaxar, e não ficar vigiando o “pentelho”. Com o ruído da taça se espatifando no chão, os pais se levantam e correm até a criança. Pedaços de vidros se espalham pelo chão, caindo, inclusive, nas mesas em volta, nos pratos das pessoas, e mesmo nos cabelos das mulheres próximas ao incidente. Vou propor duas reações possíveis que os pais tiveram e você “vota”.

Reação A. Os pais correm a acudir a criança para ver se tudo estava bem com ela e, em seguida, passam a pedir desculpas às pessoas próximas, mortos de vergonha pelo ocorrido. Em seguida, buscam ajuda dos garçons para limpar a área atingida pelos cacos minúsculos de vidro.

Reação B. Os pais correm a acudir a criança para ver se tudo está bem com ela, enchem a criança de beijos, dizem que não foi nada, que a culpa não foi dela, e voltam para a sua mesa sem se dirigir às pessoas das mesas em volta e sem buscar ajuda junto aos garçons a fim de garantir que os cacos de vidro não permaneçam, colocando todo mundo ao redor em situação de risco.

Se você votou na reação A, errou. O que aconteceu foi a reação B, por incrível que pareça. Talvez, não tão incrível assim. Afinal de contas, a única preocupação dos pais foi garantir que a criança não se sentisse culpada pelo que aconteceu. A rigor, os culpados foram eles, adultos, responsáveis pelo que uma criança de cinco anos faz.

As avós sempre nos ensinaram que crianças não podem mexer em determinadas coisas.

Mesmo que, num momento de desatenção, você não veja que seu filho brincava com um objeto de vidro (todo mundo pode perder de vista uma criança de vez em quando), na sequência do incidente, após ver se tudo está bem, você deveria vestir o manto da humildade e pedir desculpas aos outros.

Mas as avós estão fora de moda. O que está na moda é uma pedagogia e psicologia da economia da autoestima das crianças. E isso está destruindo a educação, as escolas e as próprias crianças.

Os pais mais jovens hoje fazem dos seus filhos pequenos ditadores, perguntando a eles o tempo todo “o que desejam”. Num movimento de suposta instauração do “direito das crianças” não fazerem o que não querem, os pais fazem dessas crianças adultos insuportáveis, incapazes de lidar com os desafios que qualquer vida normal traz para as pessoas.

Aposto que, em poucos anos, não haverá mais avaliação alguma nas escolas, e essas existirão apenas para reforçar a autoestima dos pequenos mimados de 25 anos. Mas, afinal de contas, qual a causa disso?

Seriam muitas. Muita gente capaz está estudando o fenômeno, tentando entender por que os jovens, hoje em dia, entram na universidade com uma idade mental afetiva de uma criança de dez anos. As escolas são usinas de idiotas da autoestima. Eu arriscaria uma intuição acerca de uma das possíveis causas.

Além do conhecido narcisismo epidêmico do mundo contemporâneo (que faz dos adultos uns retardados mentais em geral), acho que uma das principais causas desse fenômeno é a culpa que os pais sentem por acharem um saco ter que tomar conta do “pentelho” —quase sempre um pentelho único.

Filhos estão fora de moda e diminuem a sensação de felicidade, autonomia e autoestima dos próprios pais (neste caso especifico porque, quando você tem filhos, você é continuamente julgado pelas
pessoas à sua volta, principalmente as mães).

O número de mentiras cresceu no mundo contemporâneo. Por exemplo: os pais morrem de medo que seus filhos venham a ser gays, lésbicas ou trans, mas quem confessar é fuzilado imediatamente.

A cultura Instagram transformou todos em idiotas de vidas posadas. A única forma de editar a criação dos filhos é fingir que está sempre tudo bem, e que tanto eles quanto os pais sempre vivem um roteiro de amor perfeito contínuo.