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domingo, 19 de março de 2023

AVALIAÇÃO DE SAÚDE PSÍQUICA/EMOCIONAL

 



Depois de muito debate interno e de muita reflexão, concluí que a saúde psíquica tem várias faces, tem a singularidade e a complexidade humanas, portanto é difícil desenhá-la com um perfil em comum, exceto pela baixa quantidade de doenças.

Eu pensava em diagnosticar saúde psíquica através de três parâmetros percentuais. Quanto mais próximos de 100% (taxa ideal e inatingível) eles estivessem, mais saúde haveria:

1. Independência (sustento próprio) e autonomia (poder mandar na própria vida); isso inclui baixo custo emocional para se sentir amparado na vida.

2. Conhecimento dos próprios desejos;

3. Capacidade de criar circunstâncias favoráveis (habilidade de negociação com o mundo) para a realização desses desejos.

Mas essa abordagem implica uma certa imposição de um ideal de liberdade, e isso me criou dificuldades a usá-lo, pois sou avesso a qualquer imposição.

Por exemplo: uma pessoa tem na fé religiosa sua principal fonte de amparo. Isso supõe um arco de possibilidades que vão desde a tranquila ideia da crença num ser protetor (“entrego nas mãos de deus o que não posso controlar, e ele cuidará de mim”), a uma vassalagem que lhe rouba a vida, para que seu grupo religioso a ampare.

Ou seja, há fés mais saudáveis e fés mais doentes. A variável seria: o quanto te custa o amparo da fé? Quanto menos custoso, mais saúde, e vice-versa.

Portanto, a pergunta sobre a saúde passa a ser sobre o preço do amparo: o quanto te custa sentir-se bem? Qual é o preço do pedágio que você paga, para levar sua vida em paz?

O pedágio de preço mais alto é o da doença: as doenças psíquicas são mecanismos de defesa contra a angústia de desamparo, que roubam terreno da pessoa; que lhe roubam vida; que resultam de suas condições históricas - desde a infância - de negociação com o mundo. Se elas foram muito desfavoráveis, a tendência é que você não consiga alterá-las, mesmo depois de adulto: inconscientemente, você as repete.

E ainda há as condições de hardware, as limitações psíquicas que não vêm do desamparo, mas de condições genéticas, como o espectro autista, a tendência depressiva, o Distúrbio de Déficit de Atenção/hiperatividade (DDAH), os gatilhos psicóticos e a psicopatia, e possivelmente o narcisismo herdado.

De modo que voltei a considerar a ausência percentual de doença psíquica como um parâmetro mais confiável de avaliação de saúde. Ela mostra o quanto se está pagando para ter-se um certo equilíbrio.

O que me faz lembrar, com certa dose de autoironia, do axioma do Barão de Itararé: “Nada pior para a saúde do que a doença”…


O CÔMICO, SEGUNDO FREUD E ARIANO SUASSUNA - O AMIGO PERGUNTA

 


De Claudio Kuyven: “Ariano Suassuna conta uma história e fala da visão de Freud sobre o cômico. Isso é verdade mesmo? Freud disse isso?”

Francisco Daudt: Em seu artigo “O chiste e sua relação com o inconsciente”, Freud considera dois tipos de humor assim relacionados: a piada com intenção sádica e a com intenção sexual. Ambas usam da sutileza para melhor lograr seu intento.

O obsceno, de que fala Suassuna, seria o chiste sexual intencionado. O do exemplo dele não é o sexual, é o sádico: sutilmente, o profeta chamou seu desafeto de filho da puta. A “obscenidade” seria chamá-lo assim com todas as letras, mas aí não teria efeito cômico, não suavizaria o Superego.

Os exemplos de Freud são preciosos: no de chiste hostil, conta que Napoleão deu um baile em Roma para comemorar a conquista da Itália. Dançando com uma italiana, perguntou-lhe rudemente em francês se todas as italianas dançavam mal assim. Ela lhe respondeu em italiano: “No, ma buona parte!” Como Napoleão era de origem corsa, e a Córsega era parte da Itália, ela aludia então a sua origem, usando seu nome em italiano.

O chiste sexual foi feito por um comprador de roupa feminina, que se encantou com a vendedora. Esta mostrou-lhe o vestido que usava como uma possibilidade de compra. Ele lhe respondeu: “O vestido é lindo, mas gostaria de vê-lo em minhas mãos”.

Em ambos os casos, a resposta foi um sorriso de apreciação, meio caminho andado para a aceitação do insulto… e do flerte.


RESTOS VITAIS

 



O luto de gente viva costuma acontecer como efeito dos rompimentos amorosos, amizades que terminam, parentes que se afastam, fins sempre um tanto incertos se comparados ao luto da morte, em que você vê o defunto.

Mesmo nos da morte, se ela não foi constatada (como no caso dos desaparecidos, vide as Mães da Praça de Maio), a incerteza assombra, a esperança atormenta e não dá o descanso da paz.

Esperança, esse é o nome do perturbador que prolonga o luto: um vaivém de dor e alento que pode se estender por anos.

O mesmo ocorre em relação a parentes afetados por Alzheimer e outras demências. Flashes de lucidez, ainda que fugazes e decrescentes, dão a impressão de que a pessoa ainda está ali. Dão esperança… e dor. E também podem fazer o luto se arrastar por anos.

Recentemente, um outro grupo que produz o mesmo efeito me chamou a atenção: os que vão sumindo, morrendo como pessoas, dominados pelos vícios.

Claro, os viciados em crack são a caricatura dessa situação. Mas alcoólatras e - incrível - sadomasoquistas fodão/merda (vícios associados são comuns) também podem ir sumindo como pessoas, devorados por sua doença incurável.

Incurável? A esperança diz reiteradamente que não, que eles têm chances de sair dali. Há neles também flashes de identidade, volta e meia parece que a pessoa ainda está lá. É assim que o luto se arrasta, numa curva declinante que parece infindável.

E não há o que fazer senão manter essa conversa interna, dar-lhes o apoio possível… mais para se ter a sensação de que tudo que era possível foi feito, e assim evitar o sentimento de culpa pelo abandono.




PORCHAT: UM BOM EXEMPLO DE SENSO INCOMUM

 



Ele pensou bem, e… decidiu que não quer ter filhos.

Havia um casal de parentes na minha infância, Cássio e Helena, que era acusado de egoísmo, pois decidiram viver em lua-de-mel e nunca ter filhos. Hoje penso que, mais que criticados, eram invejados.

As famílias eram grandes, “aceitareis os filhos que Deus lhes der”, os padres se interessavam pelo grande número de “fiéis”; os pais não discutiam, entravam na linha de montagem sem questionar seus desejos e/ou competências para a tarefa.

A humanidade tem 7,3 bilhões de pessoas. Gente não é artigo em falta. Ter filhos contra a vontade não ajuda na educação deles. Porchat nos faz um bem por afirmar um direito incomum de indivíduo.





terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

PSICANÁLISE X ARTE

 



UMA AVENTURA NA ABSTRAÇÃO (usando o App Zen Brush):
“Um elefante no meio do temporal”.

A arte e a poesia permitem viagens pessoais na maionese, interpretações que não se pretendem "verdadeiras", feitas apenas para o deleite de quem as contempla.

A psicanálise, não. A psicanálise se debruça sobre o universo psíquico de alguém que sofre. Ela precisa estar comprometida com a busca do entendimento verdadeiro.

É esta a origem da palavra: psíco = mente, + análise = decompor em partes para entender.






ALCOÓLICOS ANÔNIMOS VIA INTERNET: UM BOM FRUTO DA COVID

 



Dois empecilhos ao sucesso dos Alcoólicos Anônimos: o rótulo e a presença na reunião. São ambos agravantes vindos do Superego: “eu só bebo socialmente, eu não sou um merda de um alcoólatra, nem estou indo a uma reunião de merdas”.

Pois as reuniões se dão, depois da Covid, remotamente. Ainda as há presenciais, mas hoje tem-se essa opção. Isso reduziu a resistência do Superego ao tratamento. Ou seja, o anonimato - que já era um facilitador - se tornou maior ainda. Com a vantagem de você poder ser um visitante, experimentar sem participar. Deixar para decidir depois de ter olhado debaixo da cama, e descoberto que o bicho-papão não estava lá.

A principal ferramenta anti-Superego continua lá: o acolhimento afetivo de gente embarcada na mesma luta, ninguém é melhor que ninguém, todos se apoiam mutuamente, todos querem o bem de todos e de cada um.

Os AA têm sido uma ferramenta coadjuvante muito valiosa para o meu trabalho. (Link abaixo).


A senha do on-line é 000 000.



ENTREVISTA EM PSICANÁLISE: AVALIAÇÕES PERCENTUAIS - O AMIGO PERGUNTA

 


“O que você faz, na entrevista com um novo possível cliente?”

Francisco Daudt: Tudo o que servir para o principal propósito da psicanálise que faço: a cura das doenças psíquicas e o aumento do percentual de saúde, para que ele tenha mais chances de buscar felicidade.

Psicanálise é diagnóstico. Quero fazer diagnósticos percentuais, de sua saúde e de suas doenças. A saúde é avaliada sabendo se a pessoa é independente, autônoma, manda em sua vida, faz o que gosta, é capaz de amar e ser amada, de gostar e ser gostada, capacidade de pensar de maneira reflexiva, de ver problemas em si, de ver seus limites, de conhecer seus desejos, e finalmente se se sente amparada em termos afetivos.

Imagine-se respondendo de zero a dez a cada um desses ítens, e você terá um percentual aproximado da saúde que o cliente tem. Seu índice de saúde vai ser crucial para saber como lidar com suas doenças.

Só depois eu vou pensar em suas doenças e que percentuais elas ocupam na vida do cliente. Seu perfil, de zero a dez, é obsessivo, é narcisista?; tem vícios de substâncias, comportamentais, tem sintomas neuróticos, fobias, pânicos? Distúrbios psiquiátricos, DDAH, etc.?

Tudo de zero a dez.

Isso não se dá como se fosse uma entrevista com formulários a preencher, a coisa acontece como uma conversa gentil e atenta, de alguém que está profundamente interessado no outro. Essas cláusulas estão na minha cabeça, e eu as apresento num contexto em que elas se mostram pertinentes, dando espaço para que o cliente fale de si como quiser (o que me faz aprender sobre ele).

Finalmente, apresento-lhe o que está ao meu alcance fazer por ele, e como proponho que isso seja feito, frequência semanal (raramente mais que uma), horários (a sessão começa na hora certa, e termina 50 minutos depois), preço, formas de pagamento: é a parte do contrato claro, pois clareza e transparência servem ao cliente: nada, no meu trabalho, será misterioso ou obscuro, pois essas coisas servem ao Superego, e não ao cliente.

Como não cobro pela entrevista, pois a considero como um test-drive, ele me dirá se está dentro ou não. Se estiver dentro, a entrevista lhe será cobrada, pois no preço do carro está incluído o custo do test-drive.




PSICANÁLISE: A QUEM SE DESTINA? (O AMIGO PERGUNTA)

 



M. Cristina Ribeiro: “Dúvida: a psicanálise é só para quem sofre?”

Francisco Daudt: É, eu suponho que seja esse o principal motivo para alguém procurar a psicanálise clínica e pagar caro por suas sessões. Dizem que há também o autoconhecimento como motivação, mas, sem sofrimento? Não sei… sinceramente, eu não me interesso muito pelas razões que me fazem gostar de sorvete de pitanga.

Mas a psicanálise não acontece só nos consultórios. O interesse nela como corpo teórico, como instrumento de saber como a mente funciona, também é um grande motivador para seu aprendizado.

Mesmo porque a psicanálise tem duas faces: a pessoal e a social. A face social da psicanálise serve a inúmeros propósitos, desde o científico até metas úteis, como a educação dos filhos, a avaliação da própria saúde psíquica, a maneira de distingui-la de suas doenças, o aprendizado da complexidade humana, os vícios comportamentais presentes na sociedade e na política, o entendimento dos próprios desejos…

Por fim, pessoas curiosas que se debruçam sobre a teoria psicanalítica, sem terem que “se submeter” a uma análise (odeio essa expressão!), são muito bem-vindas, pois podem contribuir criticamente para a epistemologia psicanalítica: vale dizer, para a busca de uma teoria da mente humana que seja mais próxima do verdadeiro.

Adoro críticas e questionamentos sobre a psicanálise. Meu farol-guia sempre foi a proposta de Karl Popper (o terceiro na foto, ao lado de Darwin): faça sua teoria clara e vulnerável à refutação, e ela estará mais próxima do método científico.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

OBSESSIVOS E A FASE ANAL

 



Ser obsessivo é ser correto, limpo, arrumado, simétrico, fazer bem feito, entregar o prometido, ser pontual, não ter dívidas, tender ao pensamento binário (“ou isto, ou aquilo”, sem meio-termo, aquela maldição da Cecília Meirelles), ter exigências nas alturas sobre si mesmo, ter exigências de pureza idem, detectar máculas mínimas que desqualificam o todo… e, estatisticamente, ter uma inteligência acima da média.

A obsessividade é herdada, nasce-se com ela. Crianças de dois anos super arrumadinhas com seus brinquedos e objetos são um exemplo de que esse traço de personalidade não é aprendido, não é cultural.

Nascer obsessivo pode ser uma benção ou uma maldição, depende se a obsessividade é uma ferramenta sua, ou se você é um escravo dela. Lembrando: no funcionamento de nossa mente, tudo é percentual, ou seja, pode haver certa escravidão no obsessivo-ferramenta, e vice-versa, certa ferramenta no obsessivo-escravo.

Em tempo, o obsessivo-escravo pode sê-lo de forma contracultural: fazer tudo obsessivamente ao contrário do que mandam seus pais. É o prisioneiro da vingança.

Mas, e a fase anal com isso? Ah, é a dupla controle-pureza! A questão do controle está acima de tudo o mais, para os obsessivos. Quando ele aprende o controle dos esfíncteres, e que há lugar certo para liberar suas “impurezas”, aquilo lhe dá um poder especial de negociação com o mundo: se o azar lhe deu pais muito cobradores, sua tendência será ir para o “eu não preciso que ninguém me cobre, eu faço tudo melhor do que me pedem”. É o obsessivo hipercultural, o tipo mais comum.

É assim que se forma o Superego de um obsessivo. Em termos afetivos, é uma droga: ele não aceita ambivalência. Por isso, reprime a raiva que poderia ter de seus amparadores (geralmente, os pais). Se é uma questão de “ou isso, ou aquilo”, diante do dilema “você afinal ama?, ou odeia seus pais?” Ah, pode ter certeza de que o “ter raiva deles” vai sumir da consciência…

…produzindo esquisitices, como as neuroses obsessivas, as fobias, os ataques de pânico. E produzindo vícios, como o sadomasoquismo fodão-merda, e outras formas de s&m.

Sabe o “cutting”? Esses adolescentes que se cortam? Eles são obsessivos com raiva voltada para si mesmos, já que ela não pode ir para o endereço certo… 





A MÃE NATUREZA É PRECONCEITUOSA (ou, “você acha que manda no seu desejo?”)

 



Trazemos múltiplos preconceitos inatos em nosso cérebro, são softwares que vêm com a máquina, a começar com a maneira como vemos os estranhos de qualquer sexo: avaliação instantânea se representam ameaça e/ou se há possibilidade de interação sexual com eles.

Com um programa de computador, if-then, “se ameaça, luta ou fuga?”, “se não ameaça, seria uma oportunidade sexual?”

É o desejo de prazer em operação. Novos preconceitos entrarão aí, para ambos os sexos, numa velocidade tão grande que não nos tornamos conscientes deles.

Vamos tomar um caso em especial, como exemplo. Digamos que você é um homem que nasceu hétero. Seu desejo sexual já discriminou, descartando de saída, metade da humanidade. Mas vai piorar. Qual a faixa etária que o desejo busca? A fértil (entre a puberdade e abaixo dos 50). Aparência? “Gostosa” (significa nem muito gorda, nem muito magra, com quadril mais largo que os ombros, seios e bunda notáveis). Outro grande percentual da humanidade já foi descartado.

Só depois desses filtros genéticos, aí sim, entram os filtros culturais, uns mais conscientes: fácil?, difícil?, santa?, puta?, de família?, “pra casar?, ou pra que é?”, outros inconscientes, porque forjados pela criação e o complexo de Édipo que vem com ela.

Essa lista é grande, funciona como uma minuciosa entrevista de emprego, toda preconceituosa de modo a se encaixar num conceito: o seu desejo e suas variáveis, nenhuma delas modelável pelo politicamente correto…





“DESDE O NASCIMENTO DO BEBÊ, PERDI O TESÃO PELA MINHA MULHER. E AGORA?”

 



“Li que isso é comum, que os homens passam a ver suas mulheres como mães, que se sentem preteridos por elas, que desde a gravidez perderam o desejo, e agora só têm olhos para o bebê”.

Francisco Daudt: O que você leu é verdadeiro, porém não dá conta da sua complexidade, apesar de serem fatores atrapalhadores do desejo de qualquer homem.

Vamos aos outros vetores que consigo ver especificamente em você:

1. Atormentado que sempre foi pela luta interna/externa de lidar com suas raivas reprimidas (e as doenças viciosas delas decorrentes), você (seu Eu, seu Ego, olhando você separado do seu Superego e do seu Inconsciente) conheceu muito pouco o amor.

Eu digo amor, assim: esse sentimento gostoso de se sentir gostado e de querer bem de volta, essa vontade de estar com a pessoa, de se sentir compreendido, acolhido, de querer saber dela, de querer fazer alguma coisa para deixá-la alegre, dar-lhe prazer afetivo, carinhoso, ter a pessoa em mente, conversar com ela à distância, ficar feliz em sua presença, rir sozinho se lembrando dela, sentir sua falta, querer estar com ela o maior tempo possível.

Esse é um sentimento que só um Eu desalugado (percentualmente desalugado) pode experimentar. Porque o Eu desalugado pode examinar os encaixes de desejo, avaliar a justiça e equanimidade da troca. O sentimento de ternura que você tem pelo seu bebê é em parte amor, mas amor por filhos será sempre muito unilateral, por maior que seja: é muito mais “produzir amor” que sentir amor. E principalmente, que esperar ser amado de volta.

2. Se você teve pouca chance de experimentar amor, que dirá expressar o amor de maneira erótica. O erotismo, na sua vida, esteve envolvido na guerra da raiva: foi remédio e é fetiche. Para ser remédio, ele precisou ser fetiche. Ele nunca esteve a serviço do amor, nunca foi uma expressão daquilo que descrevi no parágrafo lá atrás, ele quase que exclusivamente funcionou como termômetro da hipocondria (“ufa, sou macho, não tenho febre!”), ou seja, um alívio, mais que um prazer.

Fetiche é um nome meio assustador, mas não é nada complicado. Ele é apenas o meio que a gente encontra para transformar a outra pessoa num irrelevante instrumento da nossa masturbação sofisticada (aquela que envolve alguém mais). Esse artifício imperativo manteve seu erotismo simplório, impessoal. O erotismo que é expressão do amor é algo complexo, construído, virtuoso, pessoal. É a vontade de trocar prazer sensório com a pessoa amada. É uma extensão do carinho.

Eu vejo você em franco progresso do aprendizado do amor, na medida em que seu Eu vai se desalugando da guerra. A enorme vantagem é que você tem parceria adequada para isso, e um desejo muito grande de aprender, já que adora a ideia e o sentimento de ser pai. Cobrar de si, agora, o upgrade de envolver o erotismo como expressão de amor me parece algo muito injusto, seria como fazer vestibular ao fim do segundo ano do ensino básico…

Paciência com você, é o que sugiro. Estamos num trabalho de desmonte (da doença, dos vícios) ao mesmo tempo em que investimos na construção de uma vida bela, virtuosa. Isso toma tempo…

(Disclaimer: cliente me escreveu durante minhas férias. Minha resposta foi editada para se tornar o mais genérica possível, preservando a confidencialidade e servindo a outros leitores também.)






UMA HISTÓRIA DE NARCISISMO

 




Ouvido do cliente: “Depois do nascimento da nossa filha, ela nunca mais mostrou nenhum desejo por mim; rechaçava qualquer aproximação, virava pro lado e dormia.”

“Meses mais tarde, ela me disse: ‘Ah, acho que eu entendi porque não quis mais sexo com você. É porque, quando você me engravidou da Joana, eu vi que tinha perdido todas as chances de voltar para o Rodolfo, minha grande paixão; ele nunca ia querer uma mulher já com filha, e a raiva que eu fiquei de você me tirou qualquer tesão’.”

“Olha, doutor, essa foi a pior coisa que eu ouvi na minha vida. A nossa história começou justamente por causa do Rodolfo. Ela estava com ele, engravidou dele, ele jurou que se ela abortasse, ele se casaria com ela; ela abortou e ele lhe deu um pé na bunda”.

“A gente já era amigo há muito tempo, e eu fui lá dar colo, consolar ela, e nessa de carinho, a gente acabou ficando junto e se casando. O Sr. sabe, como homem, eu sou um ‘papai’: eu cuido, amparo, estimulo o crescimento, me interesso pela pessoa… Será que a sina de todo ‘papai’ é ser desvalorizado pelas mulheres? Principalmente se comparado aos cafajestes, como o Rodolfo? Ou será que eu é que escolhi errado? Eu jurava que, se lhe desse uma filha, estaria curando a ferida do aborto… Porra, que engano!”

“É claro que eu não vou me separar dela, pois seria perder o convívio com meus filhos, a coisa que mais quis e mais amo na vida, acho que é esse negócio de ser ‘papai’. Sim, eu a trato bem, continuo apoiando a careira dela, cuidando do que ela precisa.

“Outro dia me disseram que a gente devia ser um casal muito feliz, pois nunca ninguém nos viu brigando. Por certo que eu não brigo com ela: só briga quem tem esperança de que o outro mude, e isso eu já perdi faz tempo.”

“Imagino que ela vá encontrar outro cafajeste e se apaixonar por ele, já que ela tem uma longa história disso. Se acontecer, eu vou acolher e esperar que ela só saia do casamento se a outra relação estiver bem encaminhada, assim eu ganho mais tempo de convívio com as crianças. O Sr. sabe, o menino veio depois de três anos, por muita insistência minha, mas foi quase uma ‘inseminação artificial’, de tão fria”.

“Acho que essa ilusão de ser feliz no casamento deve ser olhada de maneira diferente: não poderia ser mais feliz do que sou, com os filhos que tive. Afinal, não se pode ter tudo…”


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Tentei explicar para ele como funciona o narcisismo: não é por maldade, é por incapacidade inata de perceber o outro: ela não tinha a menor ideia do quanto o estava magoando com a história do Rodolfo. Eles têm um medo patológico de ver alguma falha em si mesmo.

Os narcisistas são os mais vulneráveis ao vício fodão-merda, pois TODOS sofrem de baixa autoestima, TODOS temem e negam suas limitações e vulnerabilidades, TODOS têm grandes dificuldades de cultivar a humildade como virtude.

Alguns narcisistas chegam ao consultório; desses, alguns entendem que nasceram com essa praga, alguns treinam consideração e empatia como um exercício, como redução de danos, alguns conseguem ganhar terreno, já que, na mente, tudo é uma questão percentual: não há narcisistas 100%, assim como não há ninguém isento de algum narcisismo. 





quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O QUE UMA KOMBI TEM A VER COM A PSICANÁLISE

 



O Daniel Accioly é o craque do marketing digital que gerencia e produz toda a minha comunicação pelas redes: Site, Twitter, Facebook profissional, YouTube, Instagram etc. são desenhados, musicados, legendados e postados por ele. Eu só faço o conteúdo. É uma parceria que me deixa muito feliz.

Pois sabedor do meu gosto por carrinhos 1:18 (já que não sou o Jay Leno e não tenho os originais), ele me deu de presente de natal essa kombi da foto. Ela tem um valor simbólico para além da boniteza: o da metáfora da kombi, tantas vezes usada por mim.

Digo que uma pessoa com doença psíquica é como uma kombi: até anda, mas 80% do seu motor são usados para vencer a resistência do ar, já que a kombi é uma parede ambulante.

Cabe ao psicanalista desbastar suas arestas, melhorar seu Cx (coeficiente de penetração aerodinâmica), tendo como meta transformá-la num Jaguar E-type, uma flecha cujo motor só precisa fazê-lo andar… ou voar!

Tirar, portanto, o fardo das doenças, essa parede que carregamos a contragosto, de modo a sua libido (o motor do nosso “carro”) ser usada de acordo com nosso desejo, e não nos desgastes que o complexo de Édipo nos impõe.

Obrigado, Daniel!

(Em tempo: o Jaguar E-type foi considerado por Enzo Ferrari como o mais belo carro jamais feito).





O DIA EM QUE EU RETRIBUÍ AO PELÉ (AINDA QUE SÓ UM POUQUINHO)

 



O Pedro Bial me comentou que ele estranhava todos o chamarem de 
”Bial”, quando ele se sentia sendo “Pedro”.

“Mas é porque “Bial” é sua profissão, é uma persona profissional, e “Pedro” é você. Há vantagens nessa separação. Não vê o Pelé, que só fala nele em terceira pessoa? Quando ele fala “o Pelé isso, o Pelé aquilo”, ele está intuitivamente se protegendo, protegendo o Edson, estabelecendo para si mesmo e para os outros essa distância”.

O Pedro gostou muito da teorização, e quando mais tarde entrevistou o Pelé, contou para ele a minha teoria. O rei ficou encantado, disse que era isso mesmo que ele sentia, mas nunca tinha sabido explicar.

E eu, mais encantado ainda, de ter podido retribuir a ele, ainda que só um pouquinho, por tanta beleza que ele me fez ver!






segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

PRAZERES QUE VOCÊ PODE ESTAR PERDENDO

 



Síntese

Os prazeres mais desprestigiados/ignorados: os que vêm do ânus e do reto (sobretudo entre homens); do períneo; da virilha; do umbigo; das laterais do abdome; do mamilo/aréola masculinos; das axilas; da parte interior das coxas; da nuca e de toda a volta do pescoço; do canal auditivo e das narinas; da bolsa escrotal; da parte posterior dos joelhos; dos dedos dos pés.

Mas, atenção: ter essas áreas do corpo sensíveis à excitação é resultado de uma loteria genética. Mesmo as mais óbvias podem ser cegas: há mulheres que não têm mamilos “felizes”, p.ex., enquanto há homens que os têm radiantes. E áreas menos óbvias (dedos dos pés lambidos e chupados, p.ex.) que podem ter tirado a sorte grande.

Como dizia um amigo, “esse negócio de pressa de foder é pra proletário: serve para fazer prole e deixa de lado todo o playground que uma cama pode ser”.

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Agora sim, por extenso, se você se interessar pelos detalhes:

Dos aprendizados que a psicanálise, a medicina e a psicologia evolucionista me trouxeram, se destaca o das zonas erógenas.

Elas são as áreas do corpo capazes de despertar excitação sexual, pelo prazer que dão quando estimuladas da maneira certa. Toda a superfície corporal, e suas cavidades, têm esse potencial erógeno (significa “gerador de excitação erótica). Ok, talvez seja necessário excluir os cotovelos, mas de resto, é tudo mesmo.

Com esse aprendizado, veio a percepção de desperdício: o quanto de prazer se perde por desconhecimento dessas zonas. Pudor e senso comum são as causas mais comuns desse alheamento.

Vamos mapeá-las, então. As mais comuns são a boca, a região anal e a genital. Foi daí que Karl Abraham nomeou as fases do desenvolvimento dos bebês como “fase oral” (da época da amamentação), “fase anal” (a partir dos dois anos, o aprendizado do controle dos esfíncteres e a negociação com o mundo que isso implica) e a “fase fálica” (a descoberta do prazer dos genitais).

Os prazeres da boca são desperdiçados pela pressão de performance: em vez de brincar e de pesquisar sem pressa, os beijos cinematográficos e sôfregos fazem parte de uma triste linha de montagem para se chegar aos “finalmentes”.

Os prazeres do ânus e do reto podem ser reprimidos por pudores femininos (“coisa de puta”) ou medos masculinos (“coisa de viado”). Se eles tiraram a sorte genética de ser felizes, há de se estar atento ao que preferem: carinhos digitais, lambidas, penetração. A penetração exige cuidado com a prevenção da dor: o prazer do reto vem da sua distensão alternada com o relaxamento (não tem nada a ver com a próstata, as mulheres podem tê-lo igual). O início será sempre mais delicado, pela contração automática.

Os prazeres genitais se perdem principalmente por causa do senso comum. Nas mulheres, pois muitos não dão atenção ao clitoris, pois acham que a penetração do canal vaginal “é a coisa a fazer”. No entanto, a vagina é como o reto: pode ou não ter sido sorteada como zona erógena, pode ser cega e só dar o prazer psicológico de estar sendo possuída.

Nos homens, o pau mole pode ser fonte de muito prazer, mas sofre de tremenda discriminação: há mulheres que consideram um insulto, chupar um pau mole. Mal sabem elas que o membro masculino tem ideias próprias, e reage mal a cobranças do Superego.

Como se vê, o assunto é tão extenso quanto negligenciado…








O ALÍVIO LIBERTADOR DA INSIGNIFICÂNCIA

 



“Poxa, Daudt, o bacana é que, com seus livros, você deixa um legado para a posteridade!”

“Ah, que nada, eu escrevo porque gosto, porque é um dos meus brinquedos. E depois, que legado? Todo mundo é esquecido. Me diga, quem foi Vieira Souto?”










INSTITUIÇÕES EM GERAL: UM OLHAR DE SUSPEITA

 



“Um mal genérico das instituições de qualquer espécie é que as pessoas que se identificam com ela tendem a fazer dela um ídolo.

O verdadeiro objetivo de uma instituição é simplesmente servir de meio à promoção do bem-estar de seres humanos. Na verdade, uma instituição não é sacrossanta mas ‘descartável’.

Porém, no coração de seus devotos, ela tende a se transformar num fim em si mesmo, ao qual o bem-estar dos seres humanos é subordinado, e mesmo sacrificado, se isso for necessário.

Os administradores responsáveis por qualquer instituição estão sempre inclinados a cair no erro moral de julgar ser seu dever fundamental preservar a existência da instituição que lhes foi confiada.”

Arnold Toynbee (1889-1975)

Arnold Joseph Toynbee, foi um historiador britânico, cuja obra-prima é “Um Estudo de História”, em que examina, em doze volumes, o processo de nascimento, crescimento e queda das civilizações sob uma perspectiva global.

MINHAS CONCLUSÕES

A partir do aprendizado com gente como Toynbee, e da minha experiência pessoal, deduzi as três leis de qualquer instituição, em ordem de prioridade:

1. Fazer de tudo por sua própria importância na instituição a que você pertence.

2. Fazer de tudo para que a instituição a que você pertence tenha relevância social.

3. Fazer um pouco pelas finalidades a que a instituição se propõe.





O SENTIDO DA FÉ

 



“A frase, dita por muitos, ‘Encontrei Jesus e ele me salvou!’, faz algum sentido para você?”

Francisco Daudt: Faz completo sentido. Nossa espécie é a mais carente de amparo, entre todas. Nossa dependência de pai e mãe, de seres mais fortes que nos cuidem, começa em 100% quando nascemos, cai muito lentamente, e nunca chega a zero. Desamparo é nosso maior medo.

Para agravar as coisas, temos a consciência de que nosso destino é a morte, o máximo de solidão, o desamparo final, a escuridão, o desconhecido, o estranho e todos os seus horrores, possíveis e imagináveis.

Bem, se o negócio é imaginar, por que não imaginar o amparo e partilhar com o maior número de pessoas essa imaginação? É o que temos feito nos últimos 70 mil anos: vestígios de ritos fúnebres são a primeira e mais antiga pista de uma espécie capaz de ter consciência de si, indicando que desde o início construímos uma ficção partilhada de como vencer a morte.

Todos os deuses criados desde então têm como denominador comum o amparo definitivo, a vida após a morte, todos eles pais protetores. Em nome deles, pirâmides foram construídas, guerras foram travadas, sacrifícios foram feitos, um tremendo investimento em troca de… amparo.

De modo que, sem entrar em discussões teológicas, seja pensamento desejoso ou não, a frase inicial faz todo o sentido para nossa espécie.





“ELE ESTÁ ACIMA DE NÓS” - A PSICANÁLISE DO SUPEREGO

 



“Qual a diferença dessa sua psicanálise do Superego e as outras?”

Francisco Daudt: Para começo de conversa, minha psicanálise do Superego é totalmente derivada da de Freud. A diferença é que o foco de investigação freudiana era o Id, o inconsciente reprimido, os desejos e as raivas tão transgressores que não eram suportáveis na consciência.

Quando eles vinha à tona, no consultório, era sempre com muito horror e vergonha. O cliente ficava arrasado de ver o monstro que morava dentro dele: “quer dizer que, no fundo, eu queria matar meu pai? Queria ter minha mãe só para mim? Horror!”

Claro que eu estou aludindo ao Édipo e a reação que ele teve quando “sua verdade” veio à tona. Ele ficou tão horrorizado que furou os próprios olhos.

Mas a tal “verdade” de Édipo era, afinal, uma grande injustiça contra ele. Foi o próprio Édipo a vítima da tragédia, da trama armada por aqueles que estavam “Acima dele”. Quem conhece a história sabe que seu pai tentou matá-lo duas vezes, quando ele nasceu e na estrada de Tebas. Só que na segunda vez se deu mal, e Édipo matou-o, sem saber que era ele, e em legítima defesa!

Todas as psicanálises puseram o cliente no banco dos réus, examinaram suas “culpas”, endossando-as, fizeram o cliente se arrepender de seus desejos e raivas, viram o Superego como se ele fosse o padrão moral a seguir, o meio de cura.

Mas eu sempre achei isso uma tremenda injustiça. O próprio Freud nunca questionou a “culpa” de Édipo, e eu fui seu advogado de defesa desde o meu primeiro livro, escrito há 32 anos, mostrando como tramaram contra ele, desde antes de seu nascimento.

Quem tramou? Os que estavam “Acima dele”: os adultos que o criaram. Por isso resolvi investigar quem reprime, quem pune, quem julga. Neste momento em que escrevo, uma moça foi condenada à morte pelo “crime” de usar seu véu de maneira inapropriada. Foi justo?

Eis porque resolvi investigar o juiz e suas leis: são eles justos? São tirânicos? São cruéis? Se as iranianas tiverem sintomas neuróticos e pesadelos com o desejo de uso inapropriado do véu, a psicanálise deve fazê-las se arrepender desse desejo proibido? Ou deve questionar a justiça do juiz e de suas leis?

Foi o que resolvi fazer: investigar o “Acima de nós”, o Superego.