Ouvido do cliente: “Depois do nascimento da nossa filha, ela nunca mais mostrou nenhum desejo por mim; rechaçava qualquer aproximação, virava pro lado e dormia.”
“Meses mais tarde, ela me disse: ‘Ah, acho que eu entendi porque não quis mais sexo com você. É porque, quando você me engravidou da Joana, eu vi que tinha perdido todas as chances de voltar para o Rodolfo, minha grande paixão; ele nunca ia querer uma mulher já com filha, e a raiva que eu fiquei de você me tirou qualquer tesão’.”
“Olha, doutor, essa foi a pior coisa que eu ouvi na minha vida. A nossa história começou justamente por causa do Rodolfo. Ela estava com ele, engravidou dele, ele jurou que se ela abortasse, ele se casaria com ela; ela abortou e ele lhe deu um pé na bunda”.
“A gente já era amigo há muito tempo, e eu fui lá dar colo, consolar ela, e nessa de carinho, a gente acabou ficando junto e se casando. O Sr. sabe, como homem, eu sou um ‘papai’: eu cuido, amparo, estimulo o crescimento, me interesso pela pessoa… Será que a sina de todo ‘papai’ é ser desvalorizado pelas mulheres? Principalmente se comparado aos cafajestes, como o Rodolfo? Ou será que eu é que escolhi errado? Eu jurava que, se lhe desse uma filha, estaria curando a ferida do aborto… Porra, que engano!”
“É claro que eu não vou me separar dela, pois seria perder o convívio com meus filhos, a coisa que mais quis e mais amo na vida, acho que é esse negócio de ser ‘papai’. Sim, eu a trato bem, continuo apoiando a careira dela, cuidando do que ela precisa.
“Outro dia me disseram que a gente devia ser um casal muito feliz, pois nunca ninguém nos viu brigando. Por certo que eu não brigo com ela: só briga quem tem esperança de que o outro mude, e isso eu já perdi faz tempo.”
“Imagino que ela vá encontrar outro cafajeste e se apaixonar por ele, já que ela tem uma longa história disso. Se acontecer, eu vou acolher e esperar que ela só saia do casamento se a outra relação estiver bem encaminhada, assim eu ganho mais tempo de convívio com as crianças. O Sr. sabe, o menino veio depois de três anos, por muita insistência minha, mas foi quase uma ‘inseminação artificial’, de tão fria”.
“Acho que essa ilusão de ser feliz no casamento deve ser olhada de maneira diferente: não poderia ser mais feliz do que sou, com os filhos que tive. Afinal, não se pode ter tudo…”
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Tentei explicar para ele como funciona o narcisismo: não é por maldade, é por incapacidade inata de perceber o outro: ela não tinha a menor ideia do quanto o estava magoando com a história do Rodolfo. Eles têm um medo patológico de ver alguma falha em si mesmo.
Os narcisistas são os mais vulneráveis ao vício fodão-merda, pois TODOS sofrem de baixa autoestima, TODOS temem e negam suas limitações e vulnerabilidades, TODOS têm grandes dificuldades de cultivar a humildade como virtude.
Alguns narcisistas chegam ao consultório; desses, alguns entendem que nasceram com essa praga, alguns treinam consideração e empatia como um exercício, como redução de danos, alguns conseguem ganhar terreno, já que, na mente, tudo é uma questão percentual: não há narcisistas 100%, assim como não há ninguém isento de algum narcisismo.
Muito bom, Francisco! Os processos das nossas mentes são complexos e, ao mesmo tempo, fascinantes.
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