“Li que isso é comum, que os homens passam a ver suas mulheres como mães, que se sentem preteridos por elas, que desde a gravidez perderam o desejo, e agora só têm olhos para o bebê”.
Francisco Daudt: O que você leu é verdadeiro, porém não dá conta da sua complexidade, apesar de serem fatores atrapalhadores do desejo de qualquer homem.
Vamos aos outros vetores que consigo ver especificamente em você:
1. Atormentado que sempre foi pela luta interna/externa de lidar com suas raivas reprimidas (e as doenças viciosas delas decorrentes), você (seu Eu, seu Ego, olhando você separado do seu Superego e do seu Inconsciente) conheceu muito pouco o amor.
Eu digo amor, assim: esse sentimento gostoso de se sentir gostado e de querer bem de volta, essa vontade de estar com a pessoa, de se sentir compreendido, acolhido, de querer saber dela, de querer fazer alguma coisa para deixá-la alegre, dar-lhe prazer afetivo, carinhoso, ter a pessoa em mente, conversar com ela à distância, ficar feliz em sua presença, rir sozinho se lembrando dela, sentir sua falta, querer estar com ela o maior tempo possível.
Esse é um sentimento que só um Eu desalugado (percentualmente desalugado) pode experimentar. Porque o Eu desalugado pode examinar os encaixes de desejo, avaliar a justiça e equanimidade da troca. O sentimento de ternura que você tem pelo seu bebê é em parte amor, mas amor por filhos será sempre muito unilateral, por maior que seja: é muito mais “produzir amor” que sentir amor. E principalmente, que esperar ser amado de volta.
2. Se você teve pouca chance de experimentar amor, que dirá expressar o amor de maneira erótica. O erotismo, na sua vida, esteve envolvido na guerra da raiva: foi remédio e é fetiche. Para ser remédio, ele precisou ser fetiche. Ele nunca esteve a serviço do amor, nunca foi uma expressão daquilo que descrevi no parágrafo lá atrás, ele quase que exclusivamente funcionou como termômetro da hipocondria (“ufa, sou macho, não tenho febre!”), ou seja, um alívio, mais que um prazer.
Fetiche é um nome meio assustador, mas não é nada complicado. Ele é apenas o meio que a gente encontra para transformar a outra pessoa num irrelevante instrumento da nossa masturbação sofisticada (aquela que envolve alguém mais). Esse artifício imperativo manteve seu erotismo simplório, impessoal. O erotismo que é expressão do amor é algo complexo, construído, virtuoso, pessoal. É a vontade de trocar prazer sensório com a pessoa amada. É uma extensão do carinho.
Eu vejo você em franco progresso do aprendizado do amor, na medida em que seu Eu vai se desalugando da guerra. A enorme vantagem é que você tem parceria adequada para isso, e um desejo muito grande de aprender, já que adora a ideia e o sentimento de ser pai. Cobrar de si, agora, o upgrade de envolver o erotismo como expressão de amor me parece algo muito injusto, seria como fazer vestibular ao fim do segundo ano do ensino básico…
Paciência com você, é o que sugiro. Estamos num trabalho de desmonte (da doença, dos vícios) ao mesmo tempo em que investimos na construção de uma vida bela, virtuosa. Isso toma tempo…
(Disclaimer: cliente me escreveu durante minhas férias. Minha resposta foi editada para se tornar o mais genérica possível, preservando a confidencialidade e servindo a outros leitores também.)
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