Marcio Fagundes: “O que você acha da contribuição de Lacan à psicanálise?”
Francisco Daudt: Sérgio Augusto disse uma vez que o livro mais superestimado que conhecia era “Mil Platos”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari: “absolutamente ininteligível, logo, uma fraude”.
“Se é ininteligível, tende a fraude”, eis um preconceito para se levar em conta, principalmente em ciências humanas. A física quântica me é ininteligível, mas humildemente reconheço que seus textos pressupõem uma enorme construção de base que me falta, de modo que minha suspeita não vai para ela, e sim para minha insuficiência.
Quando o assunto é psicanálise, o pressuposto é de que ela veio para esclarecer, não para obscurecer. Se o texto psicanalítico é ininteligível, eu suspeito que haja uma proposta perversa em curso: “se você não entendeu, é porque você é burro”.
Imagino quantos alunos de psicanálise, inseguros de suas capacidades intelectuais, reverentes diante daquilo que iria se tornar seu ganha-pão prometido, temerosos de não fazer clientela amanhã, não sucumbiram a essa chantagem e passaram a fingir que compreendiam, mesmo sem má intenção, mesmo se autoiludindo, posando de sábios para colegas ainda mais inseguros do que eles. E com isso passaram a fraude adiante…
Dei muita sorte na vida: quando quis ser psicanalista, escapei da armadilha então em curso de que a única alternativa para o kleinianismo (um pesadelo teórico) era Lacan. Fui orientado por um freudiano formado na Argentina por Angel Garma, por sua vez formado por Theodor Reik, discípulo direto de Freud.
Como eu entendia tudo o que lia de Freud, e nada do que Lacan escrevia, minha adesão ao primeiro foi proporcional à minha repulsa ao segundo. E, devo confessar, nunca tive muitas dúvidas sobre minha inteligência, de modo que aquela chantagem de que o problema não estava no texto, mas em mim, não colou.
Mais tarde fui informado de que aquilo que se conhece de Lacan já é uma transcrição esforçada de seu genro, Jacques-Alain Miller, em busca de clareza (!). Que quem teve acesso aos “textos selvagens” originais de Lacan, esses sim, sabem de fato o que é ser ininteligível.
De modo que sou hesitante em responder qual foi a contribuição de Lacan à psicanálise. A contribuição teórica, não sei mesmo.
A contribuição à fama da psicanálise, essa infelizmente eu sei: o desprezo maciço que as ciências e a epistemologia têm por ela.
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