“Como a psicanálise trata dos vícios? Eles têm cura?”
Francisco Daudt: Existe uma anedota que pergunta:
“Quantos psicanalistas são necessários para se trocar uma lâmpada”.
“Um só. Mas é preciso que a lâmpada queira muuuito ser trocada”.
Assim também é com os vícios. O que vou registrar aqui é como penso que a psicanálise deveria tratar dos vícios. É minha proposta, minha visão pessoal, fruto de minhas pesquisas clínicas.
Tudo começa, portanto, na consciência de que se tem um vício. É claro que os de substâncias são mais fáceis de se ter essa consciência… exceto no caso do álcool. Ele é tão incorporado como hábito social que a autoilusão de “eu só bebo socialmente” é muito tentadora.
Já os vícios de comportamento, ah, esses são mais difíceis de se reconhecer. A boa pergunta é: “isso está atrapalhando a sua vida? A vida que você gostaria de viver?” Pois todos os vícios o fazem; uma característica básica do vício, além do comportamento compulsivo, é contrariar nossos principais interesses, ainda que nos deem um pequeno barato de satisfação imediatista.
Mas vamos ao tratamento, em alguns passos:
1. Reconhecimento de que se tem um vício.
2. Tomar providências para combatê-lo (com ajuda, com autoajuda ou por conta própria).
3. Entender a mecânica do vício: sua origem genética; seu cultivo cultural; o que ele “consola”; seus gatilhos; se ele é solitário ou precisa de cúmplices (não são amigos, são cúmplices); as motivações, meios e oportunidades em que ele se fortalece.
Isso será base para decisões, como se afastar de cúmplices, avisar aos amigos sobre seu empenho em deixar o vício, não trabalhar em bares, frequentar grupos de apoio (como o AA) etc,
4. Tentar abstinência.
Quando a abstinência não for possível, tentar redução de danos: diminuir a extensão do pé na jaca, na quantidade e no tempo, lembrando que todo o conseguido é lucro, é ganho de terreno.
5. Saber que a abstinência sozinha não é suficiente; é preciso investir numa vida bacana, ter perspectivas virtuosas, cultivar as virtudes enquanto se desinveste do vício: a energia tirada de um deve ser aplicada no cultivo das outras; é preciso ter prazer de construção, para abandonar o prazer de alívio.
Esta é a parte principal do tratamento dos vícios: a busca do bom prazer. Abandonar vício não pode ser uma penitência, uma fonte de sofrimento. Precisa ser o começo de um caminho novo e mais bonito.
6. Mudar o jeito de encarar as recaídas: nao fazer drama. O vício adora um drama, pois ele pede “consolo”. Não há tratamento de vício sem recaídas. A estrada tem tropeços. A pedra de Sísifo vai rolar para baixo de vez em quando, mas… não rolará à estaca zero: sempre haverá um terreno ganho.
7. E agora, essa vai para os psicanalistas: NUNCA, eu disse NUNCA, usar o sentimento de culpa como ferramenta de cura. Qualquer vício contém um, digamos, um círculo vicioso de porre, ressaca moral e… novo porre para curar a ressaca moral: a culpa leva à recaída.
A culpa é parte do problema, não da solução.
Por fim, vícios não têm cura. Seus gatilhos sempre estarão lá: no caso dos vícios de substâncias, mesmo a abstinência prolongada não garante nada, sem a construção de uma vida bonita.
Nos de comportamento, de recaídas mais sutis, a vida bela e o cultivo das virtudes tem um papel maior ainda.
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