Só não era um aristocrata porque não pretendia comandar nada (aristocracia significa o comando dos melhores), nem carro dirigia, mas foi um dos melhores seres humanos que tive a ventura de conhecer.
Há coisas muito boas que vêm com o casamento. Meus dois filhos encabeçam a lista, claro, mas esse amigo da mãe deles seguramente não está longe.
Entre 1986 e 1989 foi nossa rotina passar as noites de sábado imersos na atmosfera inteligente e acolhedora de sua casa, aberta aos amigos comunistas, entre jornalistas e professores, todos a debater com a costumeira ferocidade, enquanto ele aguardava uma brecha para intervir com uma palavra sábia de lucidez desapaixonada.
Era interrompido, claro, e se calava, esperando uma nova chance de ser ouvido. Eu ali, um estranho no ninho, democrata liberal que desistiu de se meter na conversa depois que ousei dizer que o PRI (Partido Republicano Institucional do México, que já se mantinha no poder havia sessenta anos) era uma ditadura disfarçada, só para ser rechaçado por um jornalista que me calou para sempre com um “Não é!” furibundo. Tornado espectador, aprendi muito sobre dialética. Da rasa e da complexa.
Meu comunista querido era o oposto da definição que José Serra fez do PT, “o bolchevismo sem utopia”, diabo de frase que me tomou uns minutos para entender (“o poder totalitário sem idealismo”).
Ele era um utópico sem tirania. Seu ídolo era o francês do século 19, pai do socialismo utópico, Charles Fourier. Já havia se afastado do “socialismo real” quando Khrushchev denunciou Stalin e seus “malfeitos”. Migrou para o eurocomunismo. Aderiu ao PT até o mensalão vir à tona, quando foi para o PSOL. Ainda bem que morreu sem se dar conta do petrolão…
Não santificava o proletariado, o que ficou claro quando me mostrou orgulhoso um bilhete crítico de seu filho de cinco anos sobre a empregada: “Pai, a Creuza é bura”, e rimos juntos da inteligência do menino, a despeito do “burra” com um “r” só (ou por isso também).
Foi responsável pelo primeiro artigo que escrevi, que ele fez publicar na revista do partidão, “Novos Rumos”, vejam vocês! Eu havia argumentado que a AIDS era talvez a primeira praga que derrotava a tendência histórica de arranjar culpados para explicá-la (no final dos anos 1980 já se sabia que ela não era um castigo contra os gays). “Você tem que escrever isso”, incentivou-me. Foi assim que partejou este escriba.
Partilhava comigo a desdita dos professores que odeiam os olhos vácuos dos alunos. “Francisco, eu sou uma prostituta, faço qualquer coisa em classe para despertar o brilho neles”. Há inúmeros depoimentos do fascínio que suas aulas despertavam.
Revisou com carinho meu primeiro livro (“A Criação Original”), e fez-me um elogio inesquecível: “Você escreveu a versão psicanalítica de ‘A democracia como valor universal’ (livro muito valorizado de Carlos Nelson Coutinho).” Como se não bastasse, enviou um exemplar a seu amigo Paulo Francis, que me deixou nas nuvens ao escrever em sua coluna, “afinal um psicanalista que escreve limpo”.
Há um verbete no dicionário feito para ele: “indivíduo cujos atos e maneiras demonstram fidalguia e distinção de sentimentos; elegante; garboso; formoso; bem apessoado”. O verbete: gentleman. Obrigado para sempre, querido Leandro Konder.
(E ainda por cima não era só bonito de coração).
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Disponível em: https://7letras.com.br/livro/a-criacao-original/
artigo muito esclarecedor , obrigado Daudt
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