Marcio Fagundes: “Precisamos do Superego para sermos corretos?”
FD: Obrigado pela pergunta; essa é uma questão central na prática/teoria da psicanálise.
Este é um tema em que toda a sua compreensão da complexidade precisa estar presente. Vou falar bem e vou falar mal do Superego; ambas as coisas valerão. Cada pequeno parágrafo será válido, não invalidará nem o anterior, nem o próximo.
O Superego se parece com o carcereiro de um cão furioso/libidinoso/exagerado: solte o cão, e você verá as consequências...
Mas sua presença, e a existência de uma prisão, mantêm o cão em estado de fúria. Ou seja, o emprego do carcereiro não é só conter o cão; é também manter a má fama do cão. E sua fúria! Assim, o carcereiro mantém assim seu emprego e sua importância.
Que tal se nos aproximássemos aos poucos e examinássemos o cão (e o carcereiro) sem todas as cargas de preconceito sobre eles? Que tal conhecer o cão? Que tal conhecer o carcereiro?
Que tal conhecer a pessoa que carrega e mantém – com muito medo – cão e carcereiro como intocáveis, mas sabendo que o peso desse fardo lhe verga as costas e atrasa imensamente sua vida?
Eis o dilema do psicanalista: ele escolherá o reforço do sistema da carceiragem? Ou ele preferirá ser o laborioso investigador da política repressora que a doença de seu cliente contém?
Infelizmente, a história da psicanálise está cheia de reforçadores do sistema da carceiragem. Há muitos teóricos da psicanálise que foram apoiadores do Superego. Há poucos investigadores. Mesmo que Freud, seu inventor, tenha apostado completamente na investigação.
É compreensível: apoiar o Superego é mais simples. Dá respostas rápidas. Dá conselhos – mesmo que esses venham disfarçados de silêncios e de mistérios, os “conselhos que se envergonham de assim ser”. Investigar exige mais que isso...
O que nos leva à questão inicial: qual a relação da ética com o Superego? Pode haver ética sem ele? Pode haver desejo de ética?
(Prossegue em “O Superego e o desejo de ética – 2”).
“A felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.
John Stuart Mill
Definindo ética como “um acordo de não causar dano injustificado” (legítima defesa é, como diz o nome, justificada, p.e.), abre-se um leque de possibilidades de como absorvê-la, como implantá-la em nós.
Vai desde o temor das leis e da força do Estado que as impõe, até achá-la bacana e querer tê-la como virtude cultivada: o desejo de ética. O desejo de contribuir positivamente vai além: é a ética ativa.
Mas como nosso assunto é psicanálise, vamos nos focar no que se passa dentro de nossas cabeças: natureza humana, desejos egoístas e predadores, cooperação, consciência moral, sentimento de culpa, medo do desamparo, do banimento social, medo físico. Conflitos íntimos, guerra interna, dilemas existenciais.
Coisas que acontecem no cenário que Freud desenhou:
.no Id (“Algo em mim”: as forças inconscientes herdadas, os dramas históricos esquecidos de nossa criação);
.no Superego (“O que está acima de mim”: nosso juiz interno, acusador que usa nossos medos para que cumpramos suas leis; junto com ideais de perfeição inatingíveis que sempre nos olham como faltosos, em eterna cobrança).
.no Ego (o “Eu” que sentimos ser, que tenta mediar o embate dos dois Titãs anteriores e que, como o marisco, sofre entre o mar e o rochedo).
Se houver guerra interna, se o reprimido no Id for se transformando no cão furioso, vai-se precisar de um carcereiro com grandes poderes de ameaça: o Superego. Mas isso implica não haver espaço para o Eu, eu não poderei desejar de maneira ética, bela, virtuosa. Só haverá soluços de transgressões, resultando em medo e culpa depois.
Mas, assim como a filosofia nasceu da paz, do tempo de refletir, conversar, cultivar o espírito, a mesma coisa pode nos acontecer. Em duas situações: souberam nos criar bem (algo totalmente excepcional, pois criar filhos é o trabalho mais difícil que existe, e os pais, portanto, esbanjam incompetência no assunto).
A segunda situação é a melhor possibilidade da psicanálise: ela ter o papel de pacificadora, entendendo a guerra, os interesses das duas partes em conflito, a serviço do nosso Eu. Seu melhor instrumento é promover a justiça histórica.
Acalmado o cão, o carcereiro pode ter uma digna aposentadoria. O cultivo da felicidade pedirá à sabedoria de John Stuart Mill sua bússola para o desejo de ética: “a felicidade dos outros me interessa, pois suas infelicidades atrapalham a minha felicidade”.
Compare agora isso com o Imperativo Categórico de Kant, o lema da ética de Superego: “Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais”.
Ou seja, só faça aquilo que possa ser feito por todos os humanos, caso contrário, você estará sendo antiético.
Compreende quando eu digo que o Superego impõe ideais inatingíveis?
O Ego aqui prefere o John...
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Disponível em: https://7letras.com.br/livro/a-criacao-original/
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