“A psicanálise usa o sentimento de culpa como ferramenta terapêutica?”
Francisco Daudt: Não deveria jamais.
No entanto, houve um tempo (entre 1950 e 1980) em que o pensamento psicanalítico foi dominado pela culpa. Melanie Klein (1882-1960) era a referência teórica de então, e defendia que as pessoas “aceitassem a castração” (significa “se submetessem ao Superego”), reconhecessem que seus sintomas vinham de “projetarem seus ódios nos pais” (que não teriam feito nada de errado, claro) e adotassem uma “posição depressiva reparadora” (assumissem a culpa de ter sintomas, se arrependessem e se penitenciassem por isso).
Meu primeiro psicanalista era dessa linha e apesar de eu só ter 21 anos na época, detectei o sotaque religioso – não se é ex-aluno dos jesuítas impunemente – de sua “quase não fala” e lhe disse: “Ah, sim, compreendi o que a psicanálise quer. É a mesma coisa que a Igreja Católica quer de mim: que eu reconheça os meus sintomas, me arrependa deles e prometa nunca mais tê-los”.
Claro, ele ficou mudo, como de hábito.
O sentimento de culpa talvez seja a ferramenta de domínio/censura/controle de pensamento mais sofisticada que a humanidade inventou.
Ela consiste numa crença em modelos de perfeição e antimodelos desprezíveis. Você deveria ser alguém de uma virtude inatingível, caso contrário será um monstro condenado ao desterro e ao opróbio.
Claro, essa crença fica escondida em nosso juiz interno, o Superego, pronto a nos criticar e condenar por cada... pensamento, palavra, obra e omissão. Isso te soa familiar? Sim, era assim que se pecava, no ideário católico. Era assim que se ia para o inferno, caso não houvesse confissão, arrependimento e penitência.
O pior do sentimento de culpa é que ele se relaciona a valores meritórios, a causas respeitáveis, às quais você poderia aderir por gosto, mas... uma vez coagido pela culpa, você acabava com raiva desses valores e indo contra eles. Faça um alcoólatra se sentir culpado porque bebe e ele correrá para a garrafa dizendo “ ah é? Então dane-se, vou beber”, nem sempre dessa maneira educada.
É que a culpa – resultado de um julgamento sumário sem direito a defesa – acaba sendo uma injustiça em si. A culpa causa raiva... e vontade de pecar outra vez, como vingança. Bem, isso mantinha o emprego dos padres, já que eles detinham o poder da absolvição.
Pense em “me desculpa”. No quão frequente é o uso do verbo “desculpar” em nosso dia a dia. Isso dá a medida de como a crença na culpa está em nosso inconsciente. A alternativa de dizer “foi erro meu, sinto muito” nem é considerada.
Pense agora no politicamente correto. Ele defende belos valores: a tolerância, o acolhimento de diferenças, a cooperação entre as pessoas.
Mas, se a cada pensamento, eu temo estar pecando, sendo homofóbico, racista, machista, fascista etc. (a lista de antimodelos da correção política é interminável), eu acabo com raiva desses valores, jogo fora o bebê junto com a água do banho... e elejo o Trump (ou coisa pior).
Portanto, não, a psicanálise não pode usar o sentimento de culpa como ferramenta terapêutica, pois ele adoece a pessoa em vez de curá-la. Usá-lo é aderir ao juiz tirânico, é reforçar o Superego.
É curioso – e lindo – mas a psicanálise precisa cultivar a democracia na mente, aderir a ela como um valor universal. A psicanálise não pode usar instrumentos da tirania e do controle de pensamento... tais como o sentimento de culpa.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Disponível em: https://7letras.com.br/livro/a-criacao-original/
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