sábado, 27 de março de 2021

A MORTE E A MORTE DE D. LYGIA

 


2010, domingo de Páscoa. D. Lygia, aos 95 anos, comandou mais uma vez a casa para o “almocinho” que iria receber seus 7 filhos, genros e noras, 20 netos e mais de 30 bisnetos. 

Ovinhos escondidos pelo jardim, mesas postas, travessas servidas na sala de jantar, ela fez sua aparição. Acenei-lhe de longe, mas já via muito pouco e não percebeu.

Atendo o telefone às 3h da madrugada: “O pulso dela está em 40, e nós chamamos a ambulância”. Em cinco minutos, eu estava lá. Os enfermeiros já desciam a escada com ela desconfortável na maca, tentando tirar o cateter de oxigênio.

“Pode voltar agora e levá-la para a cama, que ela quer morrer em casa!”, disse eu, sem deixar espaço para discussão. O médico que acompanhava a ambulância me apertou a mão num assentimento silencioso, como a dizer, “se fosse minha mãe, eu faria a mesma coisa”.

Já deitada, ela começou o que seria seu último diálogo:

“Ah,que bom que estou de volta ao meu cantinho. (Pausa). Mas afinal, Chico, qual é a minha doença?”

“É coração fraco, mãe.”

“Humm... E as crianças? Acharam os ovinhos?” 

“Acharam todos, mãe”. 

“Ah, bom...”

E morreu. Morreu como quis: em casa e com sua missão cumprida.

Eu também cumpri a minha: único médico na família, tinha perguntado aos pais, na frente dos irmãos, se iriam querer medidas heroicas, UTI, ressuscitação etc. Disseram que não, e que esperavam de mim a proteção de tais horrores. Assim foi feito.

Hoje reconheço que tive sorte: a pressão do senso comum para a medicalização da morte não deixa ninguém mais morrer em paz. Não se conversa sobre morte, como outrora. Não se comunicam os últimos desejos, como meus pais o fizeram e o bilhete dela para mim é testemunha.





A imensa tristeza das mortes por Covid é agravada por esse distanciamento dos entes queridos. Mas suas internações fazem sentido: a esperança de cura. 

Faz-me lembrar do ensinamento de meu mestre Dr. Fernando Alvariz: “Daudt, uma coisa é parada cardíaca, outra é morte. Quando não há perspectivas, o nome é um só: morte. Deixe eles morrerem em paz”.



 
 A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD



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