“Você poderia dar alguns exemplos de como a psicologia evolucionista influencia o seu trabalho de psicanalista?”
Francisco Daudt: Nesses tempos politicamente corretos, discutir nossa natureza é algo delicado. Vende-se muito a ideia de que tudo possa ser corrigido pela criação dos filhos e pelas políticas públicas, de que tudo é uma questão cultural.
Por isso, parto de algumas premissas que, se aceitas, a conversa pode continuar. Tomemos a mais importante delas:
Mulheres engravidam; homens não. Isto é fato da natureza, não é cultural.
Aceita essa premissa, podemos conversar sobre o fato natural que mais faz diferença em nossas vidas. Ele é cheio de consequências:
1. As mulheres sempre sabem que seus filhos são realmente seus; os homens sempre terão uma margem de dúvida.
Sim, atualmente o teste de DNA pode resolver essa questão, mas considere o ponto crítico de desentendimento a que se precisa chegar antes que ele seja pedido, e quanto tempo de suspeitas e amarguras antecede esse momento.
2. As mulheres tenderão a se preocupar sobre sua reputação sexual, se são confiáveis ou não neste quesito (“Sim, o filho é mesmo seu!”).
3. Os homens podem engravidar e fugir; as mulheres estarão presas à cria, de nove meses a trinta anos ou mais.
4. As mulheres precisarão de mais ajuda, como decorrência, que os homens, pois ninguém cria filhos sozinho.
5. As mulheres tenderão a querer mais compromissos afetivos de longo prazo do que os homens.
6. Haverá negociações difíceis para que isso aconteça. Em termos grosseiros, uma guerra dos sexos que, numa caricatura, se descreve em uma frase: para ter sexo, os homens prometem casamento; para ter casamento, as mulheres prometem sexo.
Aí está a ponta do iceberg da presença da mãe natureza, injusta e desigual, em nossas vidas. O assunto aqui apenas esboçado. Há outros 90% submersos...
O ciúme masculino é principalmente sexual; o ciúme feminino é principalmente de prestígio. O homem teme criar filho dos outros; a mulher teme que seu homem invista em outros interesses que não ela – veja bem, não é nem “em outras mulheres”.
A fertilidade feminina tem prazo de validade; a masculina não. Decorre que as mulheres se preocupam mais com a perda da juventude que os homens.
Fertilidade e atratividade sexual estão ligadas. Não existe nenhuma cultura no mundo em que mulheres pós-menopausa sejam símbolos sexuais; Sean Connery foi eleito o homem mais sexy do mundo aos 80 anos.
A sobrevivência da humanidade depende do orgasmo masculino. Decorre que não há homem que não tenha experimentado orgasmo. O mesmo não se dá entre as mulheres.
O medo de cobras nasce conosco por herança genética há milhares de anos; o automóvel é o lugar mais perigoso em que entramos, mas apenas há 120 anos.
Quantas pessoas você conheceu que morreram em desastre de automóvel?
Quantas pessoas você conheceu que morreram picadas de cobra?
Continuamos com pavor de cobras. Ninguém tem medo de automóvel.
Dados: A maioria dos falecimentos por picada de cobra no Brasil acontecem com pessoas com 50 anos ou mais. Dos 844 casos ocorridos entre 2010 e 2018, 493 são desse grupo. Isso representa 58,4% do total.
São 100 pessoas POR ANO.
Durante 2019, 31.307 pessoas morreram por acidentes de trânsito e estimativas mostram que em 2020 o número não será muito diferente.
São 313 vezes mais.
Nascemos com uma programação de medos e repugnâncias que se liga aos dois anos e não se desliga mais.
Medos de escuro, altura, confinamento, répteis, grandes insetos voadores, grandes felinos... e o mais cotidiano deles, de desamparo.
Repugnância a fezes e a carne podre. Repugnância a podre é especialmente curiosa: uma pessoa pode nunca ter tido a experiência de sentir cheiro de carne podre, e vomitar automaticamente ao senti-lo pela primeira vez.
Esses medos e repugnâncias servem à nossa sobrevivência. Mas será sobre esse programa inato que o nosso Superego será construído. Ele vai absorver informações que o meio produz, para nos deixar alertas ao tipo de comportamento que pode nos por em risco.
O risco mais óbvio é o de desamparo: “se eu fizer isso, não vão mais gostar de mim”. Muitos pais ameaçam seus filhos com essa frase, inclusive. A ameaça absorvida vira vergonha e sentimento de culpa, agora despertados pela acusação desse “juiz interno” que é o Superego.
Mas as fobias nos lembram dos outros medos de raiz assumidos pelo Superego. O medo de voar de avião, assim como o de elevador, falam do confinamento e da altura. Há variadas fobias envolvendo répteis (lagartixas, p.e.), insetos e outros artrópodes (baratas, cigarras e aranhas), e até de felinos (gatos).
Finalmente, as obsessões por limpeza, medo dos germes e os nojos variados, se ligam às repugnâncias primitivas.
É o horror às “imundices”.
Quantas vezes você já ouviu alguém responder com um simples “não sei” a uma pergunta?
Ok, você pode responder a essa com um “não sei”, mas sendo “impressionista”, você diria que é frequente ou que é raro?
Muito mais comum é se ouvir “ah, vai ver que é porque...”, ou “eu acho que...”
E a partir daí, a pessoa preenche o vazio de seu conhecimento com o pensamento mágico.
Não há nada de errado nisso, é simplesmente um aspecto da natureza humana: o desconhecido nos causa medo, pode conter uma ameaça. Haver uma resposta para tudo é tranquilizador.
Quando pequeno, eu quis saber por que havia trovões durante as tempestades de verão. “Ah, é porque estão fazendo faxina no céu. Não vê a água que cai de lá? Estão lavando o chão. Os trovões é quando arrastam os móveis”, explicou-me a minha babá. E eu fiquei mais calmo...
A tradição oral, a Bíblia, os mitos, os oráculos, as videntes, as estrelas e as religiões continham todo o saber necessário. Estava escrito, os sábios disseram, e a humanidade se tranquilizava.
Foi quase anteontem, a primeira vez na história em que se disse, “Ei, espere, eu... não sei! Mas quero saber!” Há uns 500 anos apenas: o Iluminismo. O nascimento das ciências. A ignorância assumida que motivou a investigação, a pesquisa, as descobertas, a revolução científica.
Assumir o “não sei” é, pois, uma virtude. É o “não sei” curioso e interessado que nos moverá às descobertas.
Imagino um futuro psicanalista lendo estas linhas e ganhando o direito de dizer “ainda não sei” para si mesmo, afastando de si a tentação de interpretar tudo com tiradas espertas, quase místicas, certamente esotéricas e obscuras.
Um futuro psicanalista descobrindo que a ignorância assumida não é uma vergonha, mas o começo da busca do verdadeiro, uma virtude trabalhosa.
Como todas as virtudes o são: o prazer não é imediato, e sim construído.
A CRIAÇÃO ORIGINAL - A TEORIA DA MENTE SEGUNDO FREUD
Disponível em: https://7letras.com.br/livro/a-criacao-original/
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