sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O AMIGO PERGUNTA - “Há limites para uma autoanálise?

 



O AMIGO PERGUNTA 

“Há limites para uma autoanálise? Por que precisamos de alguém que nos ouça para que entendamos a nós mesmos?”

Francisco Daudt: Quando comecei a estudar psicanálise, ouvia que Freud foi a única pessoa que tinha sido capaz de se auto-analisar. 

Depois entendi que isso era conversa fiada, que a proposta do Freud era que, através do aprendido em suas análises, as pessoas seguissem se analisando pelo resto da vida (em “Análise terminável e interminável”, Freud, 1937). 

É isso: ele queria uma transferência de tecnologia para uso autônomo do cliente.

Toda a psicanálise se baseia na confiança depositada em quem escuta, caso contrário não haverá acesso ao que realmente interessa. 

Ao mesmo tempo, essa confiança pode ser doente: o paciente pode querer ser humilhado por seus “crimes”, e o analista precisa entender que a doença está mais no desejo masoquista do que na tal coisa que ele considera crime:

“Doutor, é... eu morro de vergonha, mas tenho que confessar: eu gosto de Fanta laranja!”

Agora a bola está com o analista, e ele pode tomar um de três caminhos: 

a) ele considera que esse é um gosto pervertido, que há sintoma ali, e endossa o sentimento de culpa de seu cliente; 

b) ele acha que isso é uma bobagem, que cada um pode ter o gosto que quiser, desde que não contrarie as leis; 

c) ao perceber que o paciente se condena por algo que, mesmo bizarro, é de sua singularidade, o analista se propõe a investigar a história de como aquilo se tornou condenável (e os danos causados por essa condenação).

O que diferencia a psicanálise da confissão católica é que nesta há pecado, condenação e, se houver arrependimento, absolvição. As leis já estão prontas, o confessionário simplesmente as endossa.

Na psicanálise, você investiga o que o paciente considera crime (seu desejo adoecido) e como foram feitas as leis que moram na cabeça dele (seu superego).

De modo que há riscos e limites na autoanálise, mas também os há na psicanálise com um profissional. Tudo depende do aparelho leitor: se ele for tirânico e impositivo, juiz severo como o Superego é, haverá problemas tanto num caso quanto no outro.

Mas a autoanálise feita por um cliente será sempre bem-vinda como um trabalho conjunto, se o psicanalista tem como desejável aquilo que Freud propôs: a transferência de tecnologia que fará a psicanálise prosseguir, mesmo depois que o cliente der por terminado o trabalho de consultório.

Afinal, é o que se espera que o próprio analista continue fazendo consigo mesmo, interminavelmente...

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