(Publicado em 11 de junho de 2012)
Dr. Fabio,
“A alcantácea túrcupe emana, cingindo, púcara, os zimbóreos de Altamana”.
Assim começavam os bons discursos na época em que você nasceu. Mas os tempos são outros (graças a Deus), de modo que o meu discurso não é desses. Então vamos lá:
Um brasileiro perguntou a seu amigo português:
— Você quer ir comigo a uma festa de 15 anos?
E o português:
— Escusas, mas não posso me ausentar por tanto tempo.
Pois estamos aqui, numa festa de 100 anos. Convido vocês a me acompanharem numa viagem pelo tempo:
O que é ser centenário em 2005:
É ter nascido apenas quatro anos depois da morte da Rainha Victória
É já andar de velocípede e comer bife quando o Oscar Niemeyer e a Dercy Gonçalves nasceram
É ter um ano quando Santos Dumont voou com o 14bis
É ter 4 anos quando Carmen Miranda nasceu e 50 quando ela morreu
É ter 12 anos quando Kennedy nasceu, e 58 quando ele foi assassinado
ter sido governado por 36 presidentes da república, 3 juntas militares e 4 primeiros ministros.
ter sido contemporâneo de 9 papas
ter 12 anos quando Caruso se apresentou no Rio, e 16 quando ele morreu
ter nascido no ano em que Sarah Bernhardt quebrou a perna no teatro Lyrico do Rio, e 18 anos quando ela morreu
ter quatro anos quando o teatro Municipal foi inaugurado
ter esperado 16 anos para ver seu primeiro cinema falado
ter andado de tílburi, landau, victórias e outros veículos de tração animal, como meios de transporte comuns, e não turísticos
ter escapado com vida da epidemia mundial de gripe espanhola de 1918 que matou mais de 20 milhões
ter presenciado o nascimento do avião, da geladeira; do rádio, do raio X, do ar-condicionado; da televisão, do computador; ter passado do gramofone movido à corda, do cilindro gravado para o disco de um lado só, chamado chapa, ao 78 de dois lados, já tocado na victrola elétrica, ao LP de vinil de 33 rpm, ao surgimento do estereofônico, da fita cassete; do CD; do vídeo e do DVD, e ter desfrutado de cada um deles
ser centenário é ter visto o Brasil passar por várias crises, que fazem a atual não assustá-lo. Viu os 18 do forte com 19 anos, o tenentismo. Viu o golpe de Vargas acabar com a República Velha de seu avô, quando os presidentes saíam do poder mais pobres do que quando entravam; viu uma guerra civil em que brasileiros matavam brasileiros, a revolução constitucionalista de 1932; viu Plínio Salgado dizendo anauê para imitar Hitler; viu o mar de lama que fez Getúlio se suicidar; viu duas ditaduras: a de Vargas durando 15 anos, a dos militares durando 21; viu a renúncia de Jânio; viu a tentativa de Jango de transformar o país numa república sindicalista aos moldes de Perón; viu Sarney conduzindo uma economia de 80% de inflação ao mês; viu Collor seqüestrando a poupança dos brasileiros (a dele, inclusive); viu Zélia Cardoso de Mello conduzindo a economia; viu o impedimento do Collor; e last, but not the least, viu a eleição e o governo de Lula
ser centenário é ter 16 anos quando a princesa Isabel morreu
Ter 49 anos quando Getúlio Vargas se suicidou
Ter 21 anos quando nasceu Fidel Castro
Ter 22 quando Charles Lindenberg cruzou o Atlântico
Ele tinha 12 anos quando aconteceu a revolução soviética e 13 quando o czar e sua família foram assassinados
9 anos quando eclodiu a 1a guerra mundial e 40 quando a segunda guerra terminou
é ter nascido no mesmo ano que Sartre; Greta Garbo e Howard Hughes
É ter sido contemporâneo, por exemplo:
Dos escritores Julio Verne; sir Arthur Conan Doyle; Rudyard Kypling; Machado de Assis; Euclides da Cunha; Anatole France; Fernando Pessoa; Franz Kafka e Bernard Shaw;
Dos políticos Ruy Barbosa; Teddy Roosevelt; Joaquim Nabuco; Pinheiro Machado e de Lenin;
Dos pintores Claude Monet; Cézanne; Renoir; Degas; Pedro Américo; Gustav Klimt e Modigliani;
Dos compositores Puccini; Elgar (de Pompa e Circunstância); Debussy; Chiquinha Gonzaga; Ravel e Rachmaninof;
E de gente como o Dreyfus (a favor de quem Zola escreveu o “j’accuse”), o xerife Wyatt Earp e Buffalo Bill.
Quando ele nasceu:
O império brasileiro havia terminado 16 anos antes. Em termos atuais, um fato tão antigo quanto a eleição do Collor
Dom Pedro II havia morrido 6 anos antes
No caso específico do Dr. Fabio, ser centenário é ser o mais antigo dos ex-alunos do Sto. Inácio, o decano dos sócios do Fluminense, e o mais idoso engenheiro no Brasil em atividade.
Ele estaria com sete anos, e seria provavelmente salvo do naufrágio do Titanic.
Por fim, ser centenário é ter sobrevivido a amigos e colegas de colégio e vê-los transformados em placas, como a da Rua Editor José Olympio, do Viaduto Haroldo Poland ou da Rodovia Amaral Peixoto, e ver seu melhor amigo da vida inteira, seu irmão de coração, o Feliciano, virar a Rua Engenheiro Penna Chaves, transversal da Lopes Quintas. Nas palavras de Machado de Assis, “Os amigos que tenho são novos. Os antigos estão estudando a geologia dos campos santos”.
Entro aqui na segunda parte desse petit mot, que por sorte é a última, antes que ele deixe de ser petit
O HUMOR NA VIDA DO DR. FABIO
Se há alguma coisa além da genética que pode ter contribuído para meu pai se tornar centenário, essa foi seu humor afiado. Às vezes involuntário. Quando pequeno, e morava no palácio do Catete, divertia-se atirando seus brinquedos pela amurada do terraço, em direção à rua Silveira Martins. Pouco mais tarde, filho do ministro-chefe da Casa civil (que na época era um cargo ocupado por gente honrada), estava já acostumado às modernidades, como andar de automóvel. Foi quando um mendigo bateu pedindo esmola à porta de sua casa em Petrópolis. Reparando no sapato furado do pedinte, saíu-se com uma solução brilhante: – Por quê o senhor não anda de carro, para poupar os sapatos?
Quando depois que seu primo, o Almirante Penna Botto, desistiu de bombardear Copacabana do destroier em que abrigava o pretendente à presidência, Carlos Luz, deu-se o seguinte diálogo:
Meu pai: Mas almirante, por que o senhor não atirou?
Penna Botto: Ah, Fabio, eu poderia matar inocentes.
Fabio: Almirante, para matar inocentes o senhor iria precisar de muita mira.
Na década de 20 Fabio foi infectado pela epidemia de trocadilhos que assolava o país, considerados então como o máximo da presença de espírito. Os líderes desse movimento eram os freqüentadores da Confeitaria Colombo, entre eles, Bastos Tigre, Emílio de Menezes e Olavo Bilac, protagonistas de um repente que ficou célebre como o “trocadilho dos cereais”: cansado, Emílio levanta-se para se retirar. E aí começa a pândega: “Emílio, não consinto que se evada” diz Bastos Tigre. “Se o fazes, contigo me intrigo!”. Bilac, dando a volta na mesa, empurra Emílio de volta à cadeira, e exclama, exultante: “Sentei-o”. Conformado, Emílio arremata: “Vocês hoje estão com a veia!” Este episódio ganhou recentemente o infame título, derivado da mesma doença da época: “Cereal serial” .
Pois dr. Fabio ficou contaminado para sempre, e toda vez que houve oportunidade, lá vinha ele transformando qualquer assunto pesado numa boutade, o que foi uma grande contribuição para que nós não nos levássemos a sério. Uma crise no congresso que despertou sectarismos e intransigências, fez com que ele dissesse: “Isso é estranho, pois o congresso sempre foi conhecido como uma grande casa de tolerância”. Para os mais novos, casa de tolerância era o nome que se dava então ao que o Ancelmo Góis chama hoje de casa de saliência. Quando seu humor se tornava mais picante, em nome da modéstia, ele usava os trocadilhos franceses, seus amados calembours, sempre tendo D. Lygia a lhe corrigir a pronúncia, o que sempre foi uma brincadeira particular entre eles. Mas também podia usar as charadas. A mais saborosa entre elas, em que o sotaque lusitano é necessário, eu vou ter a ousadia de reproduzir aqui, mas, fique tranqüilo, meu pai, não vou dar a solução*: “abre e fecha sem ter mola, 1 – andam aos pulinhos na mata, 2 – conceito: quisera ter três”.
Seu humor se revelava até nos atos falhos: Fabio adolescente, em casa de seus pais, constatou a chegada de surpresa de uns parentes bem na hora do jantar. Meu avô Edmundo, homem gentil por natureza, entreteve os primos na sala enquanto a família se contorcia de fome. O avô, por fim, chama a família e serve aos parentes um aperitivo. Foi quando meu pai lhes ergueu brinde, e, querendo dizer “à saúde”, disse-lhes “adeusinho”.
Sobre parentes, escrevi em um dos meus livros o episódio em que, num velório, perguntei: “Pai, quem é aquele ali?” E ele: “É um primo longe… mas não o suficiente”. Quero me penitenciar aqui pela minha completa invencionice. Tal coisa nunca aconteceu. Ao contrário, meu pai sempre foi tão devoto à família, e vocês aqui são prova disso, que uma vez, também num funeral, se queixou ao tio Octávio Veiga que era uma vergonha que os parentes só se encontrassem nessas ocasiões. Era preciso combinar uma reunião, um encontro informal. O tio não tinha os pudores do meu pai. Retrucou logo: “É mesmo, Fabio… e que tal no jardim zoológico?”
Dr. Fabio herdou do avô Edmundo a gentileza. Uma vez, escutando por horas a conversa de uma senhora, começou a cabecear de sono. Recuperava-se da cabeceada com um ar atento, ou com uma observação agradável. Numa dessas saiu-se com um “que maravilha!”. A senhora, indignada, disse: “mas Dr. Fabio, eu lhe conto que minha filha grávida foi abandonada pelo marido e o senhor me diz que isso é uma maravilha?” E meu pai, já completamente desperto: “Mas é claro, é ou não é uma maravilha ela ter se livrado de tamanho cafajeste?”
Em outra ocasião não escapou tão fácil. Numa roda de pôquer as cartas lhe vinham cada vez piores. Sem que ele se desse conta, uma viúva, magra, feia, de fartos buços e toda de negro, veio espiar seu jogo. Lá ficou, bem atrás dele, por duas ou três rodadas. Na última, tendo recebido a pior mão da noite, dr. Fabio desabafou: “Um urubu pousou na minha sorte!” Dessa vez não houve conserto.
Quem sabe dominar o humor, em geral, sabe também dominar o drama. Dr. Fabio usou muito o drama em nossa educação. Bom mineiro, nunca jogou dinheiro fora. Portanto, pedir algum para ele sempre foi um sofrimento. Para nós, sem dúvida;
- Pai, me dá 10 reais para ir ao cinema?
Suspeito que para ele não era sofrimento, era só motivo para fazer drama. A face contraída, a mão no peito era de alguém apunhalado. A cada novo argumento nosso, parecia que estávamos torcendo a faca. Afinal, depois de muitos gemidos, o dinheiro saía. Seus próprios gastos eram modestos, mas nunca deixou de nos encantar quando ele vinha da cidade com um pacote da drogaria Granado, cheio de emplastros Sabiá, de Vick vaporub, de polvilho antissético, e de frascos do Pó Pelotense, o desodorante da época.
Esse seu lado de munheca de leitão assado nos ensinou uma lição preciosa: não há nada como a independência financeira. Qualquer coisa era melhor do que pedir dinheiro para o Dr. Fabio.
No entanto ele proporcionou casa própria a cada um dos filhos, uma generosidade e um empurrão para a independência dos quais sempre seremos gratos. É um gesto que pretendo repetir com meus filhos, tão bom foi para mim. Nela resido até hoje, e dela só pretendo me mudar para a rua general Polidoro, direita de quem desce. A propósito, minha futura residência também foi providenciada por ele.
Mas você pode pensar que o humor do dr. Fabio se embotou com a idade. Pois ouça então essa de um dos mais recentes almoços de domingo. Comentando as últimas declarações do nosso presidente, ele declarou: “Lula não quer ser como Getúlio, que se suicidou; nem como Jânio, que renunciou; nem como Jango, que foi deposto. Ele quer ser como JK, ou seja: prefere morrer esmagado por um ônibus.
Por fim, me lembro da vez em que ele viu uma placa na estrada para um lugar que gostava de ir: “Como viver cem anos em Guarapari”. Naquela hora foi atacado de seu antigo trocadilhismo e respondeu de pronto: “Como viver cem anos? Ora, é muito fácil: com uma bolsa de colostomia”.
Meu pai querido, todos nós temos que lhe agradecer por nos mostrar como viver cem anos de um jeito muito mais feliz e bonito. Do jeito como você os viveu.
FIM
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Apenas para os interessados
(atenção: contém linguagem chula)
*- Solução da charada: Abre e fecha sem ter mola (uma sílaba): cu
Andam aos pulinhos na mata (duas): leões
Conceito: quisera ter três = culhões
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