Artigo Encomendado
Antes de mais nada quero dizer que fui convidado para comentar o drama que envolve o antes e o depois do tratamento cirúrgico da obesidade mórbida sem nunca ter feito parte de qualquer equipe multidisciplinar que tratasse do assunto, sem ser qualquer espécie de especialista na doença. Minhas credenciais se resumem ao fato de ser um psicanalista admirado por quem me convidou (um ilustre portador da doença, operado) pelo fato de me debruçar com humildade, carinho, vontade de entender e perseverança sobre o que há de mais complexo sobre a face da terra, a mente humana, e também por, sendo eu mesmo um eterno candidato à obesidade mórbida, ter sentido na pele o que ela é, além de haver tratado alguns pacientes com essa e com doenças semelhantes. Isto posto, vamos lá.
O fato de existir uma cirurgia de redução gastrointestinal é uma esperança de vida integrada ao mundo, ou de vida, simplesmente, para quem sofre de obesidade mórbida. A questão é que quem se opera não deixa de sofrer do problema que o levou àquela condição de risco. Fizeram a aposta de trocar a morte certa pela doença (ou a vida miserável e brutalmente limitada que esperava aquela morte) pelo risco da cirurgia, e muitos venceram essa aposta e estão aí, sobreviventes e esperançosos. No entanto a doença de origem está lá, à espreita.
Alguns pacientes vêem a cirurgia como um tamanho divisor de águas em suas vidas que buscam, como os que experimentaram a quase morte por um enfarte ou acidente, dar um novo e melhor rumo a suas existências. Tenho certeza que a grande maioria que se opera deseja isso. Para ser bem sucedido é preciso conhecer o inimigo, pois ele não foi removido com a cirurgia, já que mora principalmente na alma (aqui sem nenhuma conotação religiosa, simplesmente um nome que traduz nosso psiquismo, esse complexo de programas mentais que envolve algumas coisas compreensíveis, outras não, pelo menos no presente, todas morando no cérebro).
O que sabemos do inimigo? O que leva uma pessoa a comer tanto, ao ponto de se transformar num ser que vive as humilhações e os sofrimentos que, estou certo, já foram descritos o suficiente neste livro? Para começar, assim como o câncer, nosso inimigo aqui não é fácil de combater porque não é único, não tem apenas um fator. Isso implica ver cada pessoa como única e aprender sobre ela, conhecer o possível sobre cada fator que constitui sua doença. É melhor que isso comece antes da cirurgia, penso eu, pois a sedução para se imaginá-la como um passe de mágica, como um toque da varinha de condão que faça sumir todos os problemas, é muito grande. É importante que o paciente absorva o realismo de entender a cirurgia como um expediente heróico para salvar sua vida e dar-lhe uma nova chance de viver melhor. É preciso que ele não a entenda como a cura definitiva de seus males. É necessário focalizar e dar prioridade à compreensão de sua doença, que certamente o acompanhará pelo resto de seus dias.
Uma pergunta é comum nesses casos: quais os fatores orgânicos da doença e quais os psicológicos? Essa é uma pergunta que tinha cabimento do século passado para trás. Hoje sabemos que fatores psicológicos são fatores orgânicos: o cérebro é um órgão. Todos os seus males são bio-eletroquímicos, o diabo é que a neurociência está ainda engatinhando, basta dizer que o tratamento dos vícios ainda precisa desesperadamente da abstinência para funcionar. Na verdade a abstinência continua sendo seu carro-chefe, mesmo quando se trata de um vício de comida, coisa de que, teoricamente, não podemos nos abster.
A pergunta impertinente do parágrafo anterior, portanto, ainda precisa ser respondida. Vou tentar respondê-la. Apesar de cada vez mais podermos detectar causas orgânicas, ou pelo menos fatores orgânicos da obesidade mórbida, como um demoníaco metabolismo encravado no genoma, hereditário, pois, dois fatores psicológicos devem ser sempre procurados nela: depressão e o vício. Cabe dizer que, apesar de nem todo viciado ter uma depressão de base, todo deprimido é candidato a se viciar, não importa em quê, já que o mecanismo do vício produz um alívio momentâneo na dor da depressão.
Por que eu uso uma palavra tão feia (vício) nesses tempos tão politicamente corretos? Não daria para usar “adição”, “dependência química” ou outra menos agressiva? Um eufemismozinho? Aí é que está. Faz parte do tratamento dos vícios encarar a dura realidade, mesmo sabendo que eles não são “falta de vergonha na cara”, e sim uma doença cerebral, pois eles se incorporam de tal modo à nossa maneira de pensar que acabam por influenciar o nosso senso de ética, acabam por afetar nossa “vergonha na cara”. Os próprios Alcoólicos Anônimos, que inventaram esse eufemismo para se intitular, quando se levantam para dar depoimento nunca se declaram “sou alcoólico” e sim “alcoólatra”, porque é mais duro e verdadeiro. Você pode argumentar que a vergonha na cara afetada é efeito, e não causa. É verdade, mas depois de um certo tempo causa e efeito estão inapelavelmente misturados num… círculo vicioso, e a dignidade perdida (sempre se perde grande parte dela, senão toda, quando o vício ganha terreno) só será recuperada, junto com o senso de ética, a integridade moral, a auto admiração e estima, através de uma guerra sem trégua ao vício dentro de nós, essa mesma que esperaríamos ver o Estado executar nas cidades e no país. A metáfora vale também porque liberados os recursos que o vício consome, podemos com eles construir uma vida mais bonita para nós.
Vamos então àquela pergunta do “como é que a pessoa pode chegar a ficar daquele jeito horrível?” Eu tenho um cunhado que disse à minha irmã quando ela quis fazer plástica do rosto: “Olha que plástica é pior do que lepra!” Mas como? “É que lepra é aos poucos e você vai se acostumando, e na plástica você pode virar um monstro amanhã”. A obesidade mórbida é, portanto, como a lepra, aos poucos, e você vai se acostumando a não olhar para o espelho, a não se ver fotografado ou filmado, conservando a imagem mental que a gente tem de si mesmo e que sempre se choca com a “realidade” quando nos deparamos com esses registros. Você não deixa de alcançar a bunda para se limpar de um dia para o outro. É aos poucos que se passa para o bidê, e do bidê para o chuveiro com um escovão, e disso para o estágio final, que é entubar a ajuda de terceiros. Mas é o tal negócio: nesse processo a dignidade, a auto admiração e estima, a integridade e finalmente o senso de ética vão lentamente para o brejo.
É, portanto, o vício nosso primeiro alvo a entender. Ele se deriva de uma propensão genética (o gatilho) que alguns têm, e da vontade de obter prazer imediato, livrando-se momentaneamente de todos os problemas e preocupações, coisa que a humanidade toda tem. Quando esses dois fatores se somam temos uma dupla dinâmica quase imbatível. O que eu gostaria que existisse e que a tecnologia ainda está a nos dever? De uma terapia genética que desarmasse aquele gatilho. Estamos atrasados, pois? É verdade, e não nos resta nada a fazer senão esperar e usar dos recursos que dispomos hoje, entre eles a velha e desagradável abstinência. Posso ouvir uma pergunta (e a tenho ouvido de fato, de muitos pacientes): “você não gostaria de uma pílula que nos permitisse comer e beber à vontade sem nenhuma conseqüência danosa à saúde, sem engordar ou perder a cabeça pela embriaguez?” A resposta é curiosa: gostaria, mas não quero. Explico: gostaria, sim, porque me daria imenso gosto, inexcedível prazer. Acho que o pão francês quente com manteiga gelada é a maior invenção da humanidade, além de ser um símbolo básico de suas conquistas maiores (a agricultura e a pecuária), aquilo que permitiu a vida urbana e a filosofia.
Mas não quero, porque faz parte do nosso processo civilizatório a conquista do prazer mediato. O prazer que resulta do investimento, da construção, do aprendizado, da solidariedade, da amizade, do amor, da convivência democrática, da justiça, enfim, de todos os valores éticos que não podem ser alcançados com um estalar de dedos, que não são, portanto, imediatos. Dêem-me aquela pílula e eu passarei o resto dos meus dias (se tiver recursos para tanto) dentro de um quarto lendo, comendo pão com manteiga e bebendo leite achocolatado com açúcar, como fiz tanto na minha adolescência. Resistirei a ver meus filhos e minha mulher, pois eles podem atrasar meu prazer comilão, enfim, essas coisas que você está cansado de saber.
O paciente operado pensa freqüentemente que encontrou as tais duas pílulas na cirurgia e é por isso que muitos se dedicam a testar seus limites, a jogar com seus estômagos diminutos uma queda de braço em busca de realizar seu sonho de estabelecer residência no prazer imediato sem parecer à sociedade que é o maior dos espertos: o comedor compulsivo que “nem parece”. Como disse, o vício está lá, e não foi curado com a cirurgia.
Mas se uma pessoa operada quer combater o vício, e já que a abstinência é ainda a arma chave desse combate, como pode fazer funcionar a abstinência num território em que ela parece impossível, o comer? Ela não pode aprender a comer de tudo com moderação? Não pode operar uma “reeducação” alimentar? Para mim que vim sanfonando o peso vida afora, e que antes de ser psicanalista fui gastrenterologista e nutrólogo, vou ser sincero: falar de moderação e de reeducação para um viciado é pura balela (ou, como se diz em inglês, bullshit), se não for simples crueldade. A saída que encontrei daria um best-seller fantástico, já que os primeiros das listas americanas de livros mais vendidos falam de dieta, não fosse o fato de caber em quatro linhas, e aí eu me ferrei: não se escreve um livro com quatro linhas, nem eu tenho a cara de pau de encher lingüiça (falando em comida…) para que essas quatro linhas virem um livro. Mas como isto aqui é um mero capítulo de outro livro, aqui vai minha “descoberta”:
Álcool zero. Todo comedor sabe que qualquer álcool funciona como aperitivo, dá uma vontade de comer louca. E muito álcool produz verdadeiras devastações alimentares.
Não coma nada que seja principalmente carboidrato. A abstinência possível do comedor compulsivo é a do carboidrato, a comida mais fácil de obter (nas prateleiras de supermercados e padarias) e de segurar sem ao menos olhar, sem precisar de preparo, cozinheira nem nada. Estou convencido de que o comedor compulsivo é viciado em carboidrato. Nunca conheci ninguém viciado em aipo.
Faça um bom prato, mas não repita jamais. Entre as refeições, só líquidos de baixa caloria (refrigerantes, café, e o meu preferido: chás variados com um pouco de leite, porque é quentinho e acarinha o estômago). Sei que os operados não podem se dar ao luxo de seguir este ítem, e sinceramente não sei o que aconselhar para substitui-lo.
Get a life! Arranje uma vida para viver com sua recém adquirida dignidade, uma vida de construção de prazeres mediatos, uma vida com lugar para a beleza. A participação em grupos de apoio pode bem fazer parte dela, pois (eu sei bem disso) ajudar os outros é ajudar a si mesmo.
As medidas são drásticas, sim, mas a morte é mais, e a vida sem dignidade não vale a pena. Venho sendo cobaia dessas medidas e me dando muito bem com isso, como em nenhum tratamento antes. Porém tenho consciência de que não existe uma única obesidade mórbida e o que serve para alguns não servirá para outros.
Por fim uma palavra sobre a depressão. Não existe tempo melhor na história da humanidade para se ter depressão que o tempo atual. Os remédios são mais eficazes e mais limpos (com menos efeitos colaterais) do que nunca. E o progresso nesse campo continua. Como a depressão freqüentemente está na base das doenças compulsivas e dos vícios, os pacientes de obesidade mórbida que forem depressivos lucrarão imensamente com o tratamento medicamentoso e o acompanhamento psicoterapêutico para perseguirem o ítem 4 da minha lista: viver melhor, que é o que todos queremos.
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Em 13 de outubro de 2003, por solicitação de Andréa Ferreira
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