(Publicado em 11 de junho de 2012)
Artigo publicado N’O Globo
Odeio ter que brigar. Odeio sentir raiva. Não tenho vocação para qualquer espécie de militância política. Quem me conhece ou leu meus livros sabe que gosto do amor companheiro, da amizade, da beleza, de cultivar o espírito, enfim, de viver em paz. Mas há ocasiões em que me lembro de uma anedota que meu pai costumava contar. Dois grãos de milho conversam no chão de um galinheiro, e um deles comenta com o outro, ao ver a galinha engolir um terceiro, a sorte que tiveram porque não foi com eles, sem se darem conta de que serão os próximos.
Pois foi esse pai, hoje com 99 anos, e minha mãe, de 90, que ficaram sob a mira de revólveres por duas horas dentro do quarto deles, reféns de cinco assaltantes que levaram o que ainda restava do último assalto (faz quatro meses) e mais o carro, que depois foi recuperado numa favela próxima. Dois assaltos em quatro meses, isso depois de viver na mesma casa 50 anos de tranqüilidade.
É então este indivíduo-milho que aqui escreve cheio de raiva e angústia por ter visto seus pais-milhos serem engolidos por uma das várias galinhas gulosas que vêm infestando nossa cidade. Cidade? País, queria dizer. Talvez um leitor-milho possa pensar um pensamento-milho típico: “Antes eles do que eu! E mesmo ele só está reclamando porque foi atingido de perto”. Quem sabe ele possa ter o mesmo desplante do Sr. Marcelo Itagiba, subsecretário de segurança(?), que declarou ser esse assalto “um episódio esporádico”. Ao ouvir isso, fui por minha vez “assaltado” por duas dúvidas: o Sr. Itagiba usa o mesmo Aurélio que eu? E mora ele no mesmo Rio de Janeiro que eu?
A raiva traz pensamentos sanguinários, mas para minha surpresa descobri que eles não se dirigiam aos pés-de-chinelo que renderam meus pais, e sim às autoridades que, em nome do Estado, deveriam estar zelando por nossa segurança. Aqui cabe um dado histórico que aprendi no livro “Armas, germes e aço”, de Andrew Diamond. Na savana africana, na época em que éramos caçadores-coletores, há milhares de anos, se um homem encontrava um desconhecido, seguia-se uma luta de morte imediatamente: o desconhecido era sempre o inimigo. Depois da domesticação de plantas e animais, a agropecuária, houve comida excedente, não foi mais necessário se deslocar sem parar, as famílias aumentaram e se estabeleceram em cidades. Ora, para que não houvesse a necessidade constante de uns ficarem matando os outros, surgiram leis de convivência, e um poder central que zelava pelo cumprimento dessas leis. Diamond chamou essa organização de governo de “cleptocracia” (o poder-ladrão, em grego), pois os governantes roubavam do povo, sob a forma de impostos, mas prometiam em troca manter as leis de convivência. A violência passava a ser monopólio do Estado, ninguém podia mais tomar as leis nas próprias mãos.
Os habitantes das cidades acharam isso muito confortável, pois que não tinham que passar o dia se defendendo e matando cada vez que um desconhecido passava por perto. Na verdade podiam se dedicar a coisas mais interessantes, e foi assim que surgiram as invenções para o bem-estar, e não para a guerra. Foi assim que surgiu a filosofia. Não se importavam muito com o roubo dos governantes, chamados impostos (ainda que esteja por nascer aquele que goste de impostos) desde que eles cumprissem seu principal papel: zelar pela lei e pela ordem. Se os cidadãos começassem a achar que os governantes os estavam roubando demais e protegendo-os de menos, a revolta era certa… e sanguinária.
Você já está sentindo em que direção meu argumento caminha, não é? Mas no meu coração não existe só raiva sanguinária. Ela conversa, e muito, com meus sentimentos democráticos. Tenho um apreço imenso pela democracia, até hoje a menos pior das cleptocracias, pois que contempla e defende os direitos do indivíduo, e melhor: não o considera inferior aos governantes! Seu poder deve emanar do povo, e em seu nome ser exercido. Qualquer tirania (hoje chamada ditadura) me enoja, seja ela exercida em nome de quem for, mesmo dos despossuídos, quando se chama ditadura do proletariado, pois tal concentração de poder sempre corrompe, sempre acaba se tornando um pretexto para a camarilha dirigente se locupletar, levando a cleptocracia ao paroxismo. A democracia, pelo contrário, é, mais que o direito, o dever de desconfiar dos governantes. Não é à toa que ela se exerce em três poderes distintos, um vigiando a aspiração tirânica do outro.
É, portanto, com meu pensamento democrático, que constato uma perversão grave e crescente no nosso Estado, e em nosso país: uma fração da população está tirando dos supostos zeladores da lei o monopólio da violência, quer seja subsidiada pelo dinheiro do tráfico, quer seja pela ganância de poder travestida em luta social pela terra. Formam governos paralelos onde vigem suas próprias regras, estranhas às instituídas pela democracia. Como resultado, nós, cidadãos que gostaríamos de viver em paz, produzindo riquezas ou fazendo filosofia, vivemos em medo, não sentimos mais a proteção dos cleptocratas (que aliás andam com um apetite tributário que vou te contar…). A isto se dá o nome de guerra civil. E nós a estamos perdendo! Seja por leniência, complacência, cumplicidade, incapacidade, despreparo ou corrupção, nossos governantes estão perdendo a guerra. Mas eles não morrerão nela. Guerra não mata generais, mata a infantaria (que significa “os infantes”, as crianças) que fica entre o mar e o rochedo, ou seja, nós, cidadãos-milhos, pequenos, impotentes e desarmados… tal como meus pais.
Um antigo primeiro-ministro inglês dizia que o homem honesto precisa ser tão ousado quanto o marginal para defender sua vida digna. Que ousadia democrática está ao nosso alcance, além do voto, para pressionar nossos governantes a se empenhar de verdade a ganhar essa guerra? E-mails em massa para a imprensa ainda livre, e para acordar o governo? Panelaços, como aquele glorioso que apoiou as “diretas, já!”? Passeatas (mas não, nunca, passeatas “pela paz”, que devem causar acessos de riso nos traficantes)? Não sei, já disse, não tenho vocação para militante. Sei que o governo democrático instituído não pode perder essa guerra. Para que o grito de vitória tão simbólico, e nada esporádico, viu, Sr. Itagiba, de “Perdeu, perdeu!” proferido pelos assaltantes não se torne o lamento de toda uma civilização: “Perdemos… perdemos.”
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