terça-feira, 24 de novembro de 2020

Artigos: Acidente Aéreo

 (Publicado em 11 de maio de 2012)

Sobre o “acidente” em Congonhas, gostaria imensamente de ter minha dor amenizada por uma manchete de jornal que estampasse, em letras garrafais, “GOVERNO ASSASSINA MAIS DE 200 PESSOAS”. O assassino não é apenas aquele que enfia a faca, mas também o que, sabendo que o crime vai ocorrer, nada faz para impedi-lo. O que ocorreu não pode ser chamado de acidente, vamos dar o nome certo: crime. Quanto mais meios de impedir o crime tem o cúmplice, mais assassino é. Remeto-me ao livro de Garcia Marques, “Crônica de uma morte anunciada”. Todos sabiam e ninguém fez nada. E não me refiro a você, leitor, que se consome em sua impotência diante deste e de tantos descalabros que vimos assistindo semanalmente, ao ponto do fastio. Ao ponto de a ministra se permitir ao deboche extremo do “relaxa e goza”? Será esta sua recomendação aos parentes das novas vítimas? Refiro-me às autoridades (in)competentes, inapetentes de trabalho gestor, ávidas pelos brilharecos do poder. Refiro-me ao presidente Lula, que, há quantos meses, ó Senhor, disse em uma de suas basófias inconseqüentes que queria “data e hora para o apagão aéreo acabar”, como se ele não dispusesse da devida autoridade para tal, como se não tivesse nada a ver com isso, como se, mais uma vez, não soubesse de nada.

Sinto pena de não ter estado na abertura do Pan, de não ter engrossado aquelas bem merecidas vaias. Talvez o presidente não se importe tanto, afinal, quem viaja de avião não é beneficiário de sua bolsa-esmola, não faz parte do seu particular curral eleitoral cevado com o dinheiro que ele arranca de nós, crescentemente. Devem fazer parte das tais “elites”, que é como ele escarnece da classe média que faz (apesar do governo) o Brasil crescer. Qual de nós escapou do medo de voar desde o desastre da Gol HÁ NOVE MESES? Qual de nós escapou da sensação de que tudo era uma questão de tempo para que nova tragédia se repetisse? Qual de nós assistiu confortável o jogo de empurra, “a culpa é dos controladores”; “não, é do ministério da defesa”; “a mídia também exagera tudo”; “é do lobby das empreiteiras que só querem fazer obras inúteis e superfaturadas nos aeroportos”.

Qual de nós deixou de ficar perplexo com a falta de ação efetiva para que o problema se resolvesse? Perdão, acho que a tal falta de ação geral de governo é de tamanho tão extenso e dura tanto tempo que muitos de nós a ela nos acostumamos.

Sou psicanalista, e, por dever de ofício, devo escutar cuidadoso qualquer coisa que meus clientes queiram dizer. Pois nunca pensei que fosse pronunciar no consultório uma frase que venho repetindo há algum tempo, depois de que mensalões, valeriodutos, Land-Rovers, dólares na cueca, dossiês fajutos, renans calheiros, criminalidade, insegurança pública, impunidade, pizzas e tudo isso que o leitor já sabe se despejam fétida, diária e gosmentamente sobre nossas cabeças. A tal frase: “Não quero falar desse assunto”. Os pacientes me respondem com alívio, “Ufa, eu também não!”

É o desabafo da impotência partilhada. É uma atitude semelhante à dos moradores da Bósnia, cuja única forma de resistência que encontravam era tocar suas vidas. “Welcome to Congo”? Talvez seja um insulto ao Congo.

Pois agora quero falar deste assunto. Deram-me a oportunidade de ser menos impotente, nessas folhas que o leitor ora contempla. Sei que falo por uma enorme quantidade de brasileiros trabalhadores que sustentam essa enorme máquina de (des)governo, muitos mais que os 90 mil do Maracanã, para expressar o nojo e a raiva que esse acúmulo de barbaridades nos provoca.

O assassinato em massa terá sido a gota d’água? O governo sairá da inação, da omissão criminosa? Alguém será preso, punido por todas essas coisas? Infelizmente, duvido. Ou quem sabe me prendam por delito de opinião? Por ter deixado o coração explodir? Irei para a cadeia alegremente, lembrando Graciliano Ramos, que, visitado no cárcere por um amigo, travou com ele o seguinte diálogo:

— Puxa, Graça, você, aí dentro, de novo?

— E você, o que está fazendo aí fora? Nestes tempos que correm, lugar de homem honesto é na cadeia.

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Material publicado na Folha de São Paulo.


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