(Publicado em 12 de novembro de 2011)
A amiga me conta que seu ex-marido, professor de filosofia, ensinou em aula o silogismo (conclusão que resulta de duas constatações afins) clássico, “Sócrates é homem, os homens são mortais, donde Sócrates é mortal”, mas chamou-a para ver o que um aluno havia escrito na prova: “Sogra é homem; os homens são mortais, donde sogra é mortal”.
Quando ela me contou o episódio, tivemos um ataque de riso prolongado, até que me lembrei do conceito de representação psíquica em psicanálise. Você deve conhecer a expressão “como um burro olhando para um palácio”, que pretende dizer sobre a falta de sentido que um palácio faz para um burro e a quantidade de sentidos que faz para nós. Nunca podemos afirmar que o que vimos ou ouvimos foi o mesmo que o outro viu, ou ouviu.
Foi quando paramos para refletir nas camadas de sentidos da frase que nos fez gargalhar. A primeira, mais rasa, era da ignorância do aluno que confundiu Sócrates com sogra, por nunca ter ouvido falar dele. Abaixo havia outra graça: “sogra é homem”, que aludia à indisposição que temos com as sogras em geral. Mais adiante a afirmação de que “sogra é mortal”, com seu duplo sentido de que irá morrer e de que pode matar, como uma jararaca.
Platão, criador do jeito ocidental de pensar, concebeu um ideal, algo longe dos mortais e só existente nas idéias.
Quando Freud concebeu o superego, um programa psíquico que, em alemão, está acima de nós (das über-ich), foi influenciado pela leitura de Platão, entendendo que temos na cabeça um observador idealizado que nos cobra e nos critica, comparando o que fazemos com o que deveríamos fazer (mas Freud dizia que o temos na cabeça, não que ele era o certo a seguir).
Para Platão, se alguém tentasse partir do ideal para fazer alguma coisa, ela só poderia ser uma cópia (algo menor), mesmo que aparentada com ele. Se a cópia ganhasse, ainda parente do ideal, vida própria e independente, ele a chamaria de simulacro, cada vez mais desprezível, pois mais distante do ideal.
Então o homem não poderia fazer algo parente do ideal, Platão? Que ideal doido!
Concluímos que a sogra mortal era tão engraçada porque tinha vida própria, era um simulacro.
Passei a admirar o simulacro, como os filósofos franceses o fazem, ainda que me irritem por não serem claros.
Quando Steve Jobs viu o mouse e os ícones de tela na Xerox, imaginou pessoas comuns lidando com um computador pessoal sem precisar de especialização, para seu prazer, lazer, comunicação e aprendizado. Foi daí que nasceu o Macintosh, o simulacro com vida própria.
Mas “simulacro” soa mal, como algo falso. Pensei logo em Paulo Freire, o educador que afirmou: “Quem realmente apreende algum ensinamento, torna-se autor também, e dele pode falar a partir desta posição” (mas cite o autor original, ok? É melhor).
Traduzir bem o simulacro de Platão é um problema. Mas me encanta assistir como se processa a inventividade humana, seja por criatividade ou por equívocos; acasos (como a penicilina foi descoberta) ou atos falhos, como o da sogra.
Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.
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