(Publicado em 03 de setembro de 2011)
A primeira vez em que eu escrevi sobre o sentido da vida, mostrei o que mãe natureza nos dá (quase nos impõe) sem que saibamos. Desta vez vou dizer o que podemos fazer com esta tentativa de tirania biológica.
O sentido da vida é nenhum, a menos que você considere a palavra sentido como uma direção. Ok, a direção da vida é uma só, produzir mais vida.
Fora isso, lembro-me quando meu filho, aos seis anos, me veio com esta pergunta: “Pai, qual é o sentido da vida?” Respondi: “Filho, qual é o sentido da pedra? Nenhum? Pois então, tanto a pedra como a vida são fenômenos da natureza, e eles não têm nenhuma sentido”. Eu estava lhe dando uma resposta à altura de seus seis anos, mas de tanto ouvir esta pergunta no consultório, principalmente vinda de pessoas deprimidas, que não achavam graça em nada, muito menos sentido em suas vidas, subitamente me dei conta: embora a vida, ela própria, não tenha sentido algum, somos nós, os donos dela, que lhe damos sentido e graça. Através de uma misteriosa e inconsciente força motriz: o desejo. Não confundir com vontade, que é uma das expressões conscientes dele.
Em psicanálise, o desejo é um universo que mora em nosso inconsciente. Tudo o que fazemos é movido por ele. Freud notou que, como todos os mamíferos, nós tínhamos instintos. Mas que estes instintos eram moldados de forma única pela nossa criação. Há mamíferos que passam pelo mesmo processo (quem tem um cão sabe disso). Portanto ele chamou nossos instintos moldáveis de triebe, em inglês drive, em português impulso (que foi mal traduzido do francês para pulsão). Estes impulsos são ricamente coloridos pelas nossas experiências, de tal forma que o acarajé que eu adoro significa algo completamente diferente daquele que você come, pois nossas memórias ligadas a ele são diferentes.
Quando o desejo, esta constelação de memórias ligadas ao impulso, se manifesta (e ele pode se manifestar em coisas boas como o acarajé, e em coisas sofridas como a paixão – a propósito, passio, o latim de onde veio a paixão, só admite uma tradução: sofrimento) e encontra seu objeto de satisfação, a vida ganha sentido, brilho e intensidade, mas é um sentido saído de nós. Nós é que plugamos um cabo USB em alguma coisa, que a faz brilhar e ter sentido. “Não sei o que ele vê naquela sirigaita…” Claro que você não sabe, você não tem o código de memórias dele!
Eu me lembro de uma cena de filme, “O pecado mora ao lado”, em que a atriz (Marilyn Monroe) define música clássica como “aquela que não tem letra”, enquanto a vitrola toca meu amado Rachmaninoff nº 2, piano e orquestra. Estes senhores mortos, ele, Bach, Beethoven, Debussy, Ravel e tantos outros, têm dado sentido à minha vida, um sabor que se perderá em duas únicas circunstâncias: quando a indesejada das gentes chegar, ou se um dia a depressão me acometer, uma doença que apaga o sentido da vida e faz muita gente se matar.
Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.
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