quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Natureza Humana: Negação

 (Publicado em 13 de janeiro de 2011)


Minha cabeça entrou em parafuso quando soube, hoje de manhã, que a casa de um amigo meu na serra foi varrida pela tempestade de ontem, matando uma família a quem ele a tinha alugado. Imagino, com imensa dor, a dele.

O que aconteceu comigo? Por acaso eu não sei que os verões trazem enxurradas, e com elas, riscos de morte? Que grande surpresa é esta?

É o rompimento de um importante filtro para o bom funcionamento do nosso cérebro, uma coisa como um firewall de computador, um dos principais mecanismos de defesa que nos permitem viver e funcionar chamado NEGAÇÃO.

Ai de nós se não houvesse a negação.

Quer experimentar? Você vai morrer, não é mesmo? E pode ser hoje, por um assalto, por uma bala perdida, por um enfarto fulminante. Aquela dorzinha na barriga? Pode bem ser câncer. Já apalpou seu peito? Vai viajar? Para Paris? Lembra daquele vôo da Air France? Onde está seu filho agora? Tem certeza? Ele está dirigindo? Ihh… Seu patrão estava sério hoje, quando falou com você. Será que o “debaixo da ponte” não te espera amanhã? E que tal ser velho pobre? Seus filhos vão te pôr num asilo, num depósito de moribundos, jogado e babando numa cadeira dura, olhando uma televisão preto-e-branco, enquanto ninguém te troca o fraldão?

Quem pode viver pensando nessas coisas? Nós não sairíamos de casa (blindada, no alto de uma colina, cheia de para-raios).

É aí que entra o antivirus negação. Ele permite que nosso cérebro continue funcionando bem, sem travar. “Não, minha filha dirige bem, e é responsável, ela pode ir à festa e voltar às três da manhã que não vai acontecer nada de mal”. “Ora, o transporte aéreo é o mais seguro que existe, muito mais que atravessar uma rua”. “Eu tenho feito bem o meu trabalho, e se o patrão estava sério, ele teria seus outros motivos”.

Ou, como nem poderia passar pela cabeça do meu amigo: “Nós já temos esse terreno há setenta anos, e ele nunca foi uma área de risco. Por que me preocupar agora?”. Nem poderia, nem passou. Ele, sem saber, estava usando um modulador da negação chamado probabilidade.

Não há nada garantido nessa vida (exceto a morte e os impostos). Eu moro numa vila. Passam helicópteros por cima. Quem me garante que um dia desses… Ninguém, certo? Mas as probabilidades são pequenas de eu acordar (ou não) com um aparelho em cima do meu telhado.

Por outro lado, se alguém for atravessar a rua fora da faixa de pedestres, com uma venda nos olhos, suas probabilidades de morrer atropelado são altas, mesmo que ele diga que Santa Caropita o protege, e que nada vai lhe acontecer.

Ele estará exagerando na negação e desconsiderando as probabilidades. Ou seja, ele estará prejudicado no seu software de bom funcionamento. Em outras palavras, o pobre coitado está com algum parafuso solto, meio pirado, ou andou bebendo água que passarinho não fuma, ou coisas que tais, capazes de provocar desarranjo no delicado equilíbrio que o nosso cérebro precisa para funcionar: avaliar a realidade e saber o quanto é necessário levá-la em conta, e o quanto é necessário descartá-la.

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