quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Natureza Humana: Natureza Humana Existe

 (Publicado em 20 de janeiro de 2012)


— Tá maluco, Dr. Daudt? Todo mundo sabe que a natureza humana existe! É que nem a piada do sapo e do escorpião, quando ele pica o sapo no meio do rio e os dois vão se afogar, e ele diz: “Eu não posso fazer nada, é da minha natureza…”

— Aí é que está, amigo. Para os bichos, todo mundo reconhece que eles têm natureza, que têm instintos. E você não está de todo errado. O que acontece é que você é engenheiro, um homem das ciências exatas. O mais engraçado é que você tem a companhia dos não formados e do senso comum. Qualquer pessoa vai dizer: “Isso ele puxou da família do pai”, e ninguém discorda.

Mas na Academia, no mundo das universidades, das pessoas letradas, a coisa é diferente. Eu, psicanalista, sou das humanas, como a psicologia, a sociologia, a antropologia, as políticas, a história etc. Pois você acredita que essa turma passou afirmando, desde seu nascedouro, que o ser humano era uma criatura em separado do resto dos bichos? Pode ter começado como coisa religiosa, mas depois, sobretudo depois de Marx, mudou para a “tábula rasa”.

Para eles o ser humano nascia como uma folha em branco, e ele seria o que a “cultura” (os conhecimentos transmitidos) escrevesse nele. Ninguém explicava de onde tinha vindo a tal da cultura, mas ela era a origem de todas as malvadezas do ser humano: a ganância, a trapaça, a inveja, o ciúme, a cobiça, a traição, a exploração de um pelo outro, e, é claro, as desigualdades e o capitalismo. Mas as bondades também: o comunismo iria pegar as crianças e forjar o puro e novo homem, escrevendo nele só belezas.

Este tipo de pensamento dominou as ciências humanas desde então.

O que é a natureza humana, afinal? Pense num computador. Quando você o compra, ele já vem com um monte de programas instalados. Somos nós, quando nascemos. E isso é a natureza humana. Depois você acrescenta outros que te interessam (seria a “cultura”), que ele só absorve porque já tinha aqueles programas do nascedouro. Eu acho que a comparação está boa. Veja como um bebê vira a cabeça para o lado certo quando é posto para mamar. Ou como chora com seus incômodos. Ninguém ensinou essas coisas a ele. É do seu programa operacional. Por que temos medo de altura, do escuro, de insetos voadores, baratas e cobras? Tivemos aulas disso?

As noções incorretas da ciência da natureza afetam nosso dia a dia. Minha filha voltou da escola me contando que teve que preencher um formulário onde lhe perguntavam sua raça. Ora, não existem diferentes raças na nossa espécie. Escreveu: HUMANA. No dia seguinte a professora censurou-a por debochar do questionário. Ela respondeu (porque já tinha conversado comigo) que havia respondido da mesma maneira que Albert Einstein, em Ellis Island, USA, 1937, e se a professora não achava que era um bom exemplo. Como foi aplaudida por toda a sala, a professora se calou.

Mas fico pensando em quantas crianças foram forçadas a se rotular brancas ou negras, importando um ódio racial de uso totalitário, semelhante à idéia de que somos seres vazios, prontos para mais “sábios” preencherem ao sabor de seus interesses.

Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.

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