quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Natureza Humana: Morte

 (Publicado em 12 de abril de 2011)


O ser humano é o bicho mais esquisito sobre a face da Terra. É o único que sabe, com antecedência de anos, que vai morrer. A morte e o que ela faz com nossa cabeça antes de acontecer (já que depois é assunto para debate mais longo) é o nosso tema de hoje.

Vamos começar com a morte dos outros. Ela tem graus diferentes de nos afetar.

Se a gente é completamente impotente, como no tsunami do Japão, há um pequeno momento de compaixão seguido da mais total indiferença, e mesmo de um certo fascínio pelas estatísticas (quantos graus da escala Richter? Quantos mil mortos? Quero ver de novo no youtube as cenas do tsunami e aqueles carrinhos de brinquedo). As torres gêmeas até hoje parecem filme de ficção.

Se mesmo impotentes ela nos atinge por semelhança (a tragédia de Realengo), pois poderia acontecer com as nossas crianças, a aflição é maior, o fascínio é maior (vende jornal como pão quente), a vontade de ter uma explicação é maior (para que possamos dizer, “Ah, bom, isso não aconteceria com os meus”). São os mecanismos de defesa operando.

Se ela atinge uma pessoa jovem e querida, como a Lady Di, o James Dean (ai, meu Deus, será que alguém ainda se lembra dele?) ou o Ayrton Senna, mesmo sem conhecimento pessoal, sentimos dor verdadeira. Nós “amávamos” aquela pessoa, ela nos parecia íntima, o que nos leva a algum luto, que é um processo de digestão de uma perda importante. Choramos. O choro é um resíduo do nosso tempo de crianças, quando nossas dificuldades não podiam ser expressas em palavras. Temos dor, somos impotentes como um bebê, choramos.

Se ela atinge um velhinho de nossa família, quanto mais próximo, mais luto, mais digestão difícil. Morte longa, Alzheimer, câncer doloroso, pouco luto (“descansou”). Morte súbita, susto, mais luto, quanto mais viva parecia a pessoa.

Agora a coisa engrossa: morte de filhos. Os americanos, que amam uma estatística, fizeram uma curva de dor em relação a isto. Se você perde uma gravidez de até três meses, dor basal (a mãe natureza não quis). Quanto maior o tempo de gravidez, maior a dor, maior o luto. Nascido o bebê, a dor dá um salto e a curva de dor só faz crescer a partir daí. Ela atinge seu ponto máximo na perda de um filho homem de 20 anos que ainda não procriou (se ele teve filhos, a dor é menor) e morreu de acidente. Por que um filho homem? Raciocinam os neodarwinistas que você está perdendo uma descendência muito maior do que se fosse uma mulher (por razão semelhante a daqueles chineses, que matam o bebê, se for menina). A partir daí a curva da dor se estabiliza para começar a diminuir se o(a)  filho(a) passou dos 35 anos sem procriar. São razões contempladas pela economia: você investiu enormemente tempo, dinheiro e afeto, e seu investimento sumiu num estalar de dedos. Produz a primeira dor do luto: o vazio horroroso.

Sinto muito ser tão objetivo e conciso num assunto tão delicado, parece frieza, mas, acredite, não é.

O final menos infeliz é que Freud ensinou que o fim do luto é a herança calorosa das boas memórias.

Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.

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