(Publicado em 15 de novembro de 2011)
“Eu prefiro sonhar a ser triste”, disse o portuga da novela para Griselda, seu amor impossível. É, eu vejo novela de vez em quando, já que é a principal fonte de reflexão sobre assuntos nunca pensados pela maioria dos brasileiros.
Raramente vi uma síntese tão bonita do “me engana que eu gosto” quanto esta.
Nossa espécie não gosta muito da verdade, apesar de ser capaz de concebê-la e assimilá-la, às vezes. É só pensar quantos crêem na continuação da vida após a morte, mesmo sabendo que nenhum Windows roda depois que o disco rígido queima, que não há software sem hardware para fazê-lo funcionar, que não há alma que sobreviva a um cérebro morto. Você já tomou anestesia geral? Uma situação em que o cérebro fica inoperante? Então já experimentou o sentimento do “nada”. Não há sensações, nem memórias, não há nada. Você já experimentou a morte.
Quem somos nós? Um programa “Eu” que roda entre as conexões de nossos neurônios, e nos dá a ilusão de existirmos. Entre outras ilusões: a de controle (tal coisa não existe, nem para atravessar uma rua: espere o sinal, olhe para os dois lados e você estará aumentando suas chances de chegar vivo ao outro lado); de sermos quem manda em nossas vontades, sem levar em consideração a natureza (pense nas vezes que você transou sem camisinha).
Uma de nossas ilusões é o tamanho do livre arbítrio (ou, escolha nossa, livre de condicionamentos culturais ou genéticos). Meus professores jesuítas diziam que Adão exerceu o livre arbítrio ao comer o fruto da arvore do conhecimento, e por isto foi expulso do paraíso. “Mas, padre, se o Criador lhe deu curiosidade, foi seu modelo ideal, pôs a seu alcance o instrumento de torná-lo semelhante a seu Pai, ainda com o poder de divergir da opinião Dele, o que restava a Adão, senão querer aquele fruto?” A ilusão do Livre arbítrio inaugurou-se na mordida da maçã, à força.
Esta lenda é um marco histórico da eterna conversa entre a consciência e a auto-ilusão, que é o que nos permite ir, às vezes mais para um lado (Copérnico, a dizer que não era a Terra o centro do Universo), às vezes para o outro (as várias maneiras de negar a morte, iniciadas há mais de 100.000 anos, com os rituais fúnebres, o que estabelece o começo de nossa espécie: sabemos que vamos morrer, mas “continuaremos vivos”).
Você tem visto as propagandas eleitorais na TV. Preciso dizer mais em relação ao “me engana que eu gosto”? Está bem, nos últimos anos mergulhamos num clima de cinismo sem comparação, ministros corruptos são demitidos com lágrimas e elogios, mas mesmo assim…
A saúde mental combina uma confortável associação de busca da verdade e desprezo por verdades muito incômodas. Portanto, a crença na vida eterna não é nenhuma doença, e vivermos sem pensar na morte, pois estamos vivos, é um equilíbrio. Mas a obsessão pela morte a ponto de se explodir em nome de uma causa, para chegar ao paraíso, certamente é uma doença.
Um ditado dá num bom acordo: “A morte é um momento, e não me roubará da vida nada mais do que ela é, seu momento”.
Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário