(Publicado em 02 de fevereiro de 2011)
Ela chegou ao escritório do advogado e foi dizendo que queria se separar. “Quantos anos a senhora tem?” Tinha 75 e estava casada há 52 anos. O advogado, pasmo, quis saber porquê. “O pai do meu marido era alcoólatra, por isso ele jurou que nunca ia pôr uma gota de bebida na boca. Cumpriu a promessa até três anos atrás, quando se aposentou. Os amigos cervejeiros disseram que agora ele podia, e ele começou a beber. Agora chega em casa de porre e me bate. Quero me separar!”
Esta história, verídica, é assustadora. O filho intuiu que tinha uma herança maldita, fez de tudo para que ela não o atingisse, mas deu mole aos 47 do segundo tempo… e tomou um gol!
Ouvi dizer, há tempos, que havia um gene para o alcoolismo, e não acreditei. Depois de conhecer essa história, fiquei embatucado. Anos de clínica mais tarde, entendi que hereditário não era o alcoolismo, mas os vícios. Pois fui tomando contato com uma multiplicidade de vícios insuspeitados: tabagismo; consumismo; sado-masoquismo; jogos variados a dinheiro (cavalos lerdos; mulheres ligeiras; roleta; pif-paf; bingo etc.); drogas lícitas ou não; “donjuanismo” (o vício da conquista, que chega ao clímax e se extingue com ela), nos Estados Unidos confundido com vício do sexo; winner-loser (em tradução livre, o vício do jogo “fodão-merda”, em que alguém precisa se afirmar como melhor humilhando o outro, por pura insegurança), e tantos outros.
O que é vício? É um comportamento compulsivo (mais forte que você), repetitivo, que vai contra os seus interesses mais prezados, que te autodestrói, que te humilha aos seus próprios olhos, mas que dá um prazer imediatista, uma ilusão de grandeza, uma sedução de que os problemas do mundo se foram.
Ele pode ser tão genético quanto a depressão o é. A depressão é um mecanismo de defesa contra os horrores do mundo: se o estresse é grande, o sistema entra em pane, e ficar debaixo das cobertas pode ser necessário.
Aí pode entrar o vício como uma espécie de remédio. De fato, o alcoolismo é o remédio mais comum contra a depressão. É meio tragicômico, mas vários pacientes recusam antidepressivos (porque podem viciar) enquanto aceitam o álcool e a cocaína como remédios “naturais” com que aliviam suas dores. Não os recrimino. Eles viram seus pais caretas tomando Valium e não querem virar pessoas iguais a eles.
É um tanto trabalhoso convencê-los de que o antidepressivo é uma ferramenta para que mudem suas vidas. Porque os antidepressivos são não-naturais, são “químicos” diferentes. Naturais mesmo (atenção, naturebas) são a depressão e os vícios, uma dobradinha milenar.
Estou me lembrando de um amigo clínico que, perguntado por uma cliente com infecção se ele não tinha uma coisa mais natural que o antibiótico para tratá-la, respondeu:
_Não há nada menos natural do que um antibiótico, cuja tradução é “contra a vida”. Mas é contra a vida do germe e a favor da sua. Se a senhora tem peninha dos germes, bem, a senhora procurou o médico errado, mas arque com as conseqüências de fazer bem a eles.
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