quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Natureza Humana: Classe Média

 (Publicado em 02 de dezembro de 2011)


Ele nasceu na classe média alta (no Rio, significa ser rico). Freqüentou os melhores colégios, andou de barco a vela da família (yacht, naquela época, e não iate, entendeu?), os Country Clubs da vida, teve motorista enquanto não podia dirigir, e carro quando pôde. Seus amigos eram socialites e aristocratas na adolescência e quando adulto jovem, casas de campo, cavalos e haras, sabia o que eram bobeches et sousplats, as técnicas de comer escargots, alcachofras, e de como usar a lavanda. Era fluente em inglês britânico e em francês, afinal, quem não era? Na casa de um amigo, um desenho de Picasso no lavabo. Tudo era “natural” e deveria ser percebido com um olhar blasé. Entusiasmo? Coisa de gentinha.

Mas seu pai havia ganhado a vida a partir da simplicidade dos filhos de políticos honestos de antigamente. O avô, Chefe da Casa Civil de dois Presidentes, Ministro do Supremo, considerava-se um servidor público (no sentido original, aquele que serve aos interesses públicos), e, portanto, nunca foi rico. Hoje, no cinismo em que os lulopetistas nos mergulharam, dir-se-ia que ele era otário. Mas na época, seus valores eram admirados, e foram transmitidos às gerações posteriores. O pai, ainda que rico, nunca mimou filho algum, e tirar dinheiro dele era um sofrimento. Foi o estímulo para que nosso personagem procurasse ganhar o seu, ser independente. Ele saboreava a convivência de seus amigos ricos, mas sabia que a vida era outra coisa.

Foi quando viu um anúncio: Le “must” de Cartier. Mostrava jóias e relógios. Teve um choque: então, ter essas coisas era uma obrigação, um must? E percebeu o aprisionamento que a classe rica significava. A formatação de uma vida, de forma tirânica, sem consulta a si mesmo, apenas consultando os must, a lista dos itens obrigatórios que adornavam e davam o valor que uma pessoa teria. Nada que se referisse a ela e a sua existência interior, somente os berloques que a adornavam. Por tais coisas seria considerado um winner (em bom português, um fodão), ou um loser (idem, um merda), e iria viver na agonia do fio da navalha: qualquer mau passo poderia ser fatal. Uma fonte de angústia capaz de jogar qualquer um na depressão, quando não no suicídio.

Ao se dar conta desta beira do abismo em que poderia viver, nosso personagem deu um passo de extrema ousadia: resolveu habitar em algo que ele chamou de “classe média reinventada”. Ele já tinha visto a Danuza Leão fazer uma coisa parecida, ao se mudar para o edifício Seabra (um equivalente ao Dakota, em Nova York). Algo como “não estou nem aí para o que as pessoas vão dizer, eu quero é ser simples, desfrutar dos requintes de que eu goste, não ter que me matar para pagar um custo fixo enorme”.

O fantástico é que a classe média reinventada não tem nenhum must, nenhuma obrigação. Tanto você não tem que jantar no Grand Vefour em Paris, quanto você não tem que pôr um pingüim em cima de sua geladeira. É incrivelmente mais barato, e extraordinariamente mais autêntico. Você pode experimentar ser o que é!

Material publicado na coluna “Natureza Humana”, da Folha de São Paulo.

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